Para todos aqueles que sempre acreditaram em mim. O maior obrigadão do mundo.
Prólogo
Prólog.
A adolescência é uma fase de amadurecimento. É um período de transição no desenvolvimento físico e psicológico, em que um ser humano deixa de ser criança e entra na vida adulta. Desde meus quinze anos, minha mãe ensinou-me que, para se tornar alguém na sociedade, as pessoas precisam se dedicar muito, dar o seu melhor e lutar com todas as garras, porque essa é a fase mais complicada da vida. Tudo que você faz nessa fase refletirá no futuro.
Não tive uma infância tão divertida como a das outras crianças. Perdi meu pai quando minha mãe estava grávida de oito meses. Talvez seja por isso que eu tenha me distanciado das pessoas, porque não conseguia me relacionar com outras crianças desde muito cedo e vivia isolada. Sempre imaginei como seria se estivesse com meu pai, nunca cheguei a conhecê-lo na prática. Então, minha mãe me criou sozinha.
Dos dez aos quatorze anos de idade, nunca fui a melhor aluna; apenas me enquadrava entre os mais ou menos. Tudo mudou quando completei quinze anos. Precisei me esforçar muito, porque minha mãe se tornou uma mulher mais exigente e controladora. Deve ser por isso que, até então, não me interessava em ter um namorado.
Terminei o ensino médio, fui nomeada a melhor estudante do colégio no último ano e fui admitida na melhor universidade do país: a UCM, Faculdade de Ciências da Saúde (Universidade Católica de Moçambique). Fui submetida ao exame de capacitação, no qual consegui uma excelente nota. Por isso, não precisei passar pelo ano propedêutico, indo direto para o primeiro ano de Medicina.
Nunca fiquei tão emocionada — e curiosa — em ir para uma universidade. Desde meus quinze anos, sempre soube que era capaz de entrar em uma; minhas notas falavam por si, e eu melhorei muito de lá para cá.
A minha primeira semana de aula na universidade foi a mais difícil. Não imaginei que estudaria em um anfiteatro com mais de cem estudantes. Era bem estressante e, de certo modo, perturbador. Por conta disso, comecei a ler livros de romances nos meus momentos de pausa. Os livros me faziam companhia enquanto eu me adaptava a uma vida de universitária.
De todas as histórias de amor que já li, até agora minha preferida é a de Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Eu achava que essas histórias eram apenas uma perda de tempo e que nada daquilo fazia sentido, pelo simples fato de quase sempre serem irreais e serem de alguém que, por um certo motivo — ou talvez sem nenhum —, decidiu compartilhar suas imaginações, algum acontecimento interessante que presenciou ou até alguma história contada por alguém. Nunca imaginei que um simples livro poderia despertar várias emoções em alguém. Sempre ouvi dizer por aí que, quando um livro é bom, ele te rouba do mundo real e faz você se sentir presente nele. Comigo não está sendo diferente.
Depois de duas semanas de adaptação na universidade, conheci a Cynthia e, na mesma semana, Eric e Sam. Não era minha praia fazer amigos, então foi bem estranho no começo, e Cynthia era totalmente diferente de mim. Bom, ela é diferente. E, nesses quatro meses, acabou se tornando minha melhor amiga. Agora não imagino um eu sem ela. No final das contas, não é assim tão ruim fazer amizades. Finalmente fiz amigos e já me sinto uma garota normal, um pouco normal.
A turma já não é mais estressante, muito menos perturbadora. Embora eu continue a mesma: a menina que só se preocupa com os estudos e não se interessa por rapazes… até que um garoto sádico me dá um empurrão nos portões da universidade. É apenas um empurrão! Qualquer pessoa poderia me empurrar, certo? Mas ele não é qualquer pessoa. Ele é Willem Parker.
Sempre quis ter um Romeu Montecchio na minha vida. Fui tão obcecada por Romeu e Julieta antes dele que achei que essa história iria ser revivida por mim — sem a parte trágica, claro. Mas não. Eu nunca pude ter o meu Romeu, porque o meu Romeu é uma versão bizarra de duas vezes Hardin Scott. Ele não é o Romeu e nunca será. Romeu não acabaria com a Julieta em questão de segundos e de uma maneira tão áspera. Nada foi real;
“ Meu amor por você não conhece limites”
“Acorda!”
Não sei se ouvi mesmo alguém gritar ou se ainda estava perdida no torpor do sono. A dúvida dura apenas um instante. Sento-me na cama estreita de madeira teca, esfrego os olhos, bocejo, e apanho o celular no criado-mudo de madeira ipê. A tela brilha sozinha, talvez por acaso tenha pressionado o botão. O quarto já está tomado pela claridade do sol, embora as cortinas de pano macio se esforcem para impedir sua invasão.
Demoro alguns segundos para compreender o que o visor me mostra: sete horas da manhã.
“Eu já deveria estar pronta...” penso, a voz embargada pela pressa mal acordada.
Na noite anterior, entre páginas de romance e pilhas de estudo, deixei que o sono me roubasse tarde demais. Não gosto de acumular matéria na universidade, mas pagar esse preço nas manhãs é inevitável.
“Espero que já esteja!” — a voz da minha mãe ecoa pelo corredor de piso camaru, firme, acompanhada pelo som dos passos apressados. Então percebo: não era sonho. Era ela.
“Já vou, mãe... só mais alguns minutos.” — respondo, mentindo sem convicção.
Levanto-me e ajeito as cobertas rosa berrante estampadas de borboletas. Seguro-as nas mãos e resmungo para mim mesma: “Por que continuo cobrindo a cama com isso?” As borboletas até são bonitas, mas a cor... insuportável. Ainda assim, dobro o tecido com cuidado, como faço sempre. O quarto é pequeno, simples, mas é meu. “É o meu lugar preferido da casa.” — digo alto demais, quando deveria apenas pensar.
Aproximo-me da janela. As cortinas longas, também rosadas, mas em tom mais delicado, descem até o chão em pregas suaves. Minha mãe as comprara em Maputo, no ano passado, numa viagem de trabalho. Deslizo uma das cortinas: a luz se abre sobre o meu rosto, e os pássaros lá fora cantam entre os galhos.
“Como é bom sentir-se parte da criação de Deus.” — suspiro, antes de bocejar de novo.
No banheiro, ligo o chuveiro e deixo a água fria escorrer. Nunca gostei de água quente. O frio desperta minha pele e limpa o resto de sono. Espalho o xampu nos cabelos longos e cacheados, enxáguo, e sinto a água deslizar até a pele morena clara. Depois, enrolo a toalha com calma, para evitar que o excesso volte a cair em mim.
Minha mãe grita outra vez. Já perdi a conta — talvez seja a terceira. Não reclamo. Ela tem razão: deveria acordar mais cedo para não atrasar sua ida ao trabalho.
De volta ao quarto, abro o armário antigo, onde guardo as roupas sempre dobradas. Escolho rápido: cardigã preto, jeans clara, camisa branca Levi’s e os Adidas de três listras. Ao ver meu reflexo no espelho comprido, quase da minha altura, sinto um alívio discreto: estou pronta. Nunca soube combinar roupas como Cynthia, minha melhor amiga, mas ao menos não pareço ridícula.
“Wanessa!” — o grito de minha mãe vem mais agudo, carregado de impaciência.
“Já estou indo, mãe! Mas se continuar a gritar, eu é que vou enlouquecer!” — respondo, pegando a mochila e atravessando o corredor.
Dou alguns passos, mas paro de repente. “O livro!” — lembro, antes de sair.
Volto depressa e pego, sem olhar, um romance qualquer. Não importa qual seja. Mesmo se já o tiver lido, não me incomodo em reler. Enfio-o no fundo da mochila, já pesada de tantos volumes acadêmicos — sobretudo o de psicologia médica, que parece carregar o peso de uma biblioteca inteira.
“Eu preciso de um e-reader.” — penso, fechando o zíper. “Seria mais leve carregar uma biblioteca inteira na palma da mão do que viver arrastando tantos livros.”
Murmuro, ao enfiar o livro no fundo da minha mochila, que parece estar bem pesada por causa de tantos livros. O exemplar de psicologia médica é bem pesado!
Quando chego à sala, me dou de cara com uma mulher nervosa, prestes a explodir. Isso se ela for uma bomba! Sr. Michelle Rich, ela está em pé, ao lado da mesa de jantar de vidro transparente, que vem acompanhada de cadeiras de plástico. Minha mãe está vestindo uma saia preta muito justa, camisa branca formal de manga longa, salto castanho não muito alto e um relógio prateado. Seus cabelos são cacheados como os meus, apesar de o dela não ser tão comprido quanto o meu. Seus olhos são castanhos, sua pele morena escura está um pouco mais clara que o normal, principalmente no rosto.
"O que há com você, menina!" — ouço minha mãe berrando assim que chego à sala. Suas mãos estão encostadas em cima da mesa de jantar.
"Desculpa, mãe, não vai se repetir. Você sabe que não sou assim, sempre fui pontual..." — digo. Na verdade, sou. É só hoje, não vai acontecer novamente.
"Não sei o que aconteceu, deve ser porque fiquei a noite inteira estudando. Me desculpe, não vai se repetir." — prometo. Ela sabe que isso nunca aconteceu antes, sempre sou pontual. Acordo todos os dias na hora exata.
"Melhor mesmo, porque se acontecer de novo, você terá que ir de ônibus. Não vou comprometer a única coisa que coloca o pão de cada dia dentro dessa casa e ainda por cima paga suas mensalidades, por suas irresponsabilidades. Deu para entender?" — ela avisa seriamente. Olha-me fixamente, e consigo perceber que seu tom de voz passa de nervosa para calmo.
"Sim, mãe." — respondo com toda sinceridade, dando um sorriso de leve. Não gosto de vê-la chateada. Muito menos que eu seja o motivo disso. Minha mãe sempre se preocupou para que nunca faltasse nada pra mim. Não tive a oportunidade de conhecer meu pai; ele morreu de câncer pulmonar quando minha mãe estava grávida de oito meses. Meu pai era médico especializado em cardiologia, assim como minha mãe quer que eu seja quando terminar o curso de Medicina geral. Embora, no fundo, eu quisesse me especializar em ortopedia. Mas prefiro ficar com cardiologia, não porque minha mãe insiste, mas em homenagem ao meu querido pai, que nem sequer tive a oportunidade de conhecer. Desde que meu pai morreu, minha mãe nunca se interessou por ninguém. Ela o amou profundamente e se tornou um pai e mãe pra mim.
"Você não sente falta do pai?" — pergunto, mesmo sem saber por que estou fazendo essa pergunta, depois de tantos anos que não falamos sobre ele.
Faz dezoito anos praticamente, tempo mais que suficiente para ela refazer sua vida. Eu acho que minha mãe deveria refazer sua vida. Meu pai não vai voltar. Ela precisa superar isso.
"Por que a pergunta?" — ela pergunta em resposta. Seu olhar é curioso; obviamente, não esperava por essa pergunta.
"Sei lá, só quero saber." — meu tom de voz é calmo. Não sei exatamente o que me levou a fazer essa pergunta.
Então ela dá um suspiro e responde:
"Era muito fácil não sentir falta de alguém, quando este alguém estava em sua vida."
É doloroso ouvi-la dizendo isso; posso ver as lágrimas se esforçando para não escorrer em seu rosto muito bem maquiado.
"Sinto muito, mãe." — lamento.
Ela balança a cabeça negativamente, dando sinal de que não preciso me preocupar. Claro que preciso! Eu me preocupo com ela.
"Eu acho que você precisa superar isso..." — minha voz sai meio bagunçada; não sei como ela vai reagir ao que vou dizer. "Já faz dezoito anos desde que o pai se foi. Não estou pedindo para se esquecer dele, até porque sei que ninguém conseguirá ocupar o lugar do meu pai. Mas você precisa se dar uma oportunidade de ser feliz, mãe! Seja lá onde o pai estiver, sei que ficaria feliz em saber que você está feliz. Gostaria que o pai estivesse aqui vivo, e ao nosso lado. Mas também sei que isso não vai acontecer. Ele está morto, e os mortos não voltam à vida."
Não acredito que consegui falar tudo isso para ela de uma única vez! Dou um suspiro, enquanto aguardo sua reação.
"Onde você aprendeu a falar assim? Não me diga que está namorando!" — claro, como se isso fosse possível. Ela me mataria literalmente. Ela me olha com interrogação.
"Wanessa?" — parece que minha mãe quer arrancar alguma verdade da minha boca. Verdade que não existe! Eu só queria dar força para ela seguir em frente, e olha o que ela faz! Tenta me interrogar, como se eu fosse um dos estudantes da série espanhola Elite, sendo interrogada pela morte de Marina.
"Quê? Nada a ver, mãe!" — fico nervosa. Por que eu faria isso? Eu nem dou bola para essas coisas. Além do mais, ela me mataria sem pensar duas vezes! Minha mãe já deixou claro que meninos da minha idade só querem saber de sexo. Essa frase ecoa na minha mente como um lembrete.
"Você sabe que a única coisa que me interessa são apenas os meus estudos." — esclareço, e quase engasgo ao engolir a saliva de tanto nervosismo.
"Sei." — ela diz desconfiadamente. Meus olhos se viram para baixo, de tanta vergonha.
"Acho melhor mesmo! Você sabe o que penso a respeito. Nada de pensar em garotos, nem se deixar enganar com seus papos diabólicos. Meninos da sua idade só querem saber de sexo." — minha mãe me avisa com o dedo indicador, como se estivesse falando com uma criança de seis anos.
Acorda! Eu já tenho dezoito. Dezoito!
"Apenas se preocupe com os teus estudos. Porque isso sim! Vale a pena." — ela tenta me lembrar. Já perdi a conta de quantas vezes ouvi essa frase saindo da boca dela.
"Tá bom, mãe! Você não precisa se preocupar." — digo. Meu tom de voz é de irritação; estou cansada de ouvir isso.
"Acho melhor."
"Bom, sobre eu me dar e dar uma oportunidade. Acho que vou pensar nisso." — fico feliz em saber que não estamos mais falando sobre 'meninos da minha idade serem uns nojentos'. É cansativo ouvir a mesma coisa quase todos os dias.
"Eu disse 'acho que vou pensar nisso'." — ela esclarece. O fato de dizer que vai pensar já é um bom sinal.
"Tá certo, mãe." — sorrio mais uma vez.
"Apenas agradeço ao destino por não ser tão cruel. Ele levou o homem que amei mais que qualquer um, mas também me deixou uma parte dele: você. E eu sou imensamente grata ao destino por isso."
Suas palavras me chocam, não consigo me conter, e a dou um abraço.
"Eu acho que a gente se atrasou demais hoje. E é por sua culpa. Não pense que sofro de amnésia, mocinha." — ela murmura, cutucando meu nariz com o dedo indicador, de uma forma nada carinhosa, enquanto nos desgrudamos do abraço.
Nossa! Durou pouco o lado ‘carinhoso’ da minha mãe — penso, com ironia profunda.
2
Saímos até a garagem. Vejo que o carro da minha mãe está estacionado de forma que facilite sua saída, o que é bom. Assim não será difícil sair rapidamente. O carro é branco, da marca Mark X, simples, mas bonito, e combina perfeitamente com ela. Antes de abrir o portão, retiro algumas folhas grudadas no para-brisa.
"Bem que Hélder poderia cortar essa árvore nada legal." murmuro, apoiando os braços na cintura. Olho para a árvore gigante do vizinho. Parece que ela ocupa mais nosso quintal do que o dele. Por um instante, sinto que a árvore está debochando de mim, depois de me ver limpando as gotas de cocô de suas folhas sobre o carro da minha mãe. Eu amo árvores, mas essa é idiota. Que árvore faz isso logo pela manhã? Justo pela manhã! Pensamentos absurdos passam pela minha cabeça: e se Hélder se transformasse nessa árvore, querendo se vingar da arrogância da minha mãe? Não seria nada estranho se fosse verdade.
"Vê se para de reclamar. Estamos atrasadas." Minha mãe entra no carro, interrompendo meus pensamentos. Abro os portões e ela parte.
A viagem é silenciosa, o que a torna mais longa. Ela ainda está um pouco irritada por eu ter acordado tarde. Achei que já tínhamos superado isso; a cada dia ela me surpreende. Decido me silenciar para não a irritar mais. Para chegar à universidade, localizada no centro da cidade, precisamos passar por trechos de mata com árvores gigantes. Minha mãe dirige um pouco mais rápido do que o normal, tentando evitar qualquer atraso. Não reclamo; a culpa é minha. Perguntei sobre meu pai, o que nos atrasou ainda mais, mas percebo que algo na sua expressão parece querer que eu me sinta pior do que já estou.
Hoje é segunda-feira e não sei o que esperar da universidade. Só desejo que seja um dia tranquilo, apesar de Eric ser um babaca todos os dias. E de repente, a pergunta que domina meus pensamentos: Será que Cynthia fez o trabalho de casa?
"Chegamos!" ouço minha mãe anunciar, as mãos ainda sobre o volante, visivelmente mais tranquila.
"Tenho que mandar uma mensagem para ela, preciso saber. Conhecendo-a, duvido que tenha feito." Digo a mim mesma, esquecendo por um instante que minha mãe está falando comigo.
"De quem está falando?" pergunta ela, olhando para mim. Continuo no celular e, após alguns segundos, respondo:
"Da Cynthia, mãe. Tenho quase certeza que ela não fez o trabalho de casa. Preciso saber… para ela pegar o meu."Ela continua me observando, mas não tiro os olhos do celular.
"Você se preocupa demais com essa garota, não acha?" minha mãe comenta. Fico em dúvida se é pergunta ou afirmação. Já esperava esse tipo de comentário; ela nunca gostou de Cynthia. Olho para ela, mas permaneço em silêncio.
"Acho que ela não dá a mínima para os estudos. Você não precisa virar babá de ninguém. Se a menina não se importa, o problema é dos pais dela! Desde o primeiro dia que você me apresentou, sabia que essa garota daria problemas. Não gosto dela."
Mas eu gosto. Abro a boca como se fosse responder, mas engulo as palavras. Quem ela pensa que é para falar assim da minha melhor amiga? Ela é mãe dela, meu subconsciente lembra. Ainda assim, a lembrança de quando apresentei Cynthia para minha mãe vem à tona: a recepção foi fria, nada simpática. Em contraste, a mãe de Cynthia me tratou muito bem, apesar de termos nos encontrado apenas uma vez.
"Ela é uma boa amiga, mãe! Não fala assim dela, por favor?" Não gosto de ouvir minha amiga ser desrespeitada.
"Para de se enganar, filha! E veja se não anda com esse tipo de gente." Ela resmunga, e minha paciência chega ao limite.
"Por favor, mãe! Eu faço tudo do jeito que você quer," grito alto. "Você organiza minha vida di-a-ri-a-men-te, do jeitinho que você entende! E eu nunca reclamei. Sempre tento fazer as coisas para te agradar, mas por favor! Nunca mais decida sobre minhas amizades e não fale mal dos meus amigos. Pelo menos, não na minha frente. Não vou admitir isso. Já tenho dezoito anos, não se interfira nas minhas amizades. Principalmente com a Cynthia."
Não acredito que falei desse jeito! Minha mãe parece tão surpresa quanto eu. Sinto um arrependimento sutil, mas sei que era necessário.
Antes de sair de casa, ela tinha dito algo bonito sobre o destino, e eu não queria estragar aquele momento de afeto. Mas precisava impor limites sobre minha amiga. Não importa se ela berrar ou não; está dito.
"Bom, eu nem sei o que dizer… me desculpa, filha." Fico surpresa; esperava gritos, não desculpas. Conheço minha mãe o suficiente para saber que essa mulher que está pedindo desculpas não é a que eu conheço.
"Tudo bem, mãe. Já passou." Tento sorrir.
"Era bem mais legal quando você não precisava de amigos." Ela resmunga baixinho.
Já esperava isso; ela não é do tipo que se desculpa sinceramente. É orgulhosa demais. Finjo não ouvir o comentário.
A Wanessa que não fazia amigos morreu há quatro meses, antes de entrar na universidade. Saio do carro e faço um aceno de despedida. Ela responde com um leve gesto de cabeça. Melhor assim, evitando qualquer clima tenso.
"Boas aulas, filha!" grita.
"Obrigada, mãe, igualmente no seu trabalho." respondo.
"Amo você." Ela faz gesto de beijo com as mãos. Sinto meu coração aquecer. Retribuo o beijo:
"Também amo você, mãe!" Ela sorri, liga o Mark X e se afasta lentamente.Enfim, mando uma mensagem para Cynthia antes de entrar na UCM. Não tinha mandado antes por causa da pequena discussão com minha mãe.
Pego o celular e digito: "Oi, como você está? Já fez o trabalho de psicologia médica? Deveria ter chegado mais cedo."
Fico esperando alguns segundos. Um pensamento passa rápido pela minha cabeça: E se ela não tiver feito? Nem quero imaginar! Cynthia ficaria chateada comigo e com toda razão. Sempre prometi ajudá-la, mesmo que seja errado. Mas é assim que amigos se ajudam, certo?
O celular vibra. É a resposta dela: "Estou bem. Fiz sim. Minha mãe ultimamente pega muito no meu pé." Suspiro aliviada. Ainda bem que ela fez o trabalho!
Continuo pensando: Ela deveria agradecer à mãe que tem. Catherine é muito legal, totalmente diferente da minha mãe. Eu adoraria ter uma mãe como ela, mesmo que só a tenha visto uma vez. A mãe da Cynthia foi mais legal comigo do que a minha mãe nesses dezoito anos da minha vida! Cynthia manda outra mensagem: "Onde você está? Vem logo, nerd."
Sorrio ao ler. Ainda bem que fizemos o trabalho. Odeio brigar com Cynthia. Ela é a única amiga de verdade que tenho.
3
"Sam!" chamo assim que me aproximo. Sam é um dos meus poucos amigos, embora queira ser mais do que isso. Sempre deixei claro que não quero me envolver com ninguém.
Ele é alto, forte, com cabelos escuros, lisos e brilhantes. Está vestindo uma camisa preta de mangas compridas, calça jeans azul clara e tênis preto. Sempre bem arrumado, com um estilo que combina perfeitamente com ele. Não é surpresa: sua família é financeiramente bem posicionada. Todo dia ele chega com uma roupa nova!
"Oiii!"
"Oi, como você está?" Ele me cumprimenta com um sorriso, e seus olhos grandes me encaram.
"Estou bem." Lanço um sorriso de volta.
"Não entendo o que está acontecendo aqui." Aponto ao redor do anfiteatro, onde costumamos ter aulas. "Por que estão todos aqui fora, em vez de na sala de aula?"
"Pois… fomos dispensados." Ele responde.
Sam passa as mãos pelos cabelos, alisando-os para trás. O brilho do cabelo dele é perfeito.
"Parece que há uma reunião lá em cima, com o chanceler." Ele aponta para o último andar do prédio, onde são realizadas reuniões apenas quando o chanceler está presente. Alguns dizem que somente ele tem as chaves daquele andar.
Se eu soubesse que não haveria aulas, teria ficado em casa estudando. Perdi tempo vindo até aqui… Resmungo baixinho. Não acredito que levei bronca da minha mãe à toa! Merda.
"Nessa!" Ouço duas vozes me chamando em uníssono atrás de mim. Reconheço imediatamente. Quando me viro, vejo Cynthia e Eric sorrindo. Não sabia que Eric sabia sorrir; isso é novidade.
Cynthia está vestindo uma blusa que deixa a parte inferior da barriga à mostra. A blusa é cinza de mangas curtas, e a saia jeans é curta demais para usar na universidade. Se eu me vestisse assim, minha mãe provavelmente me expulsaria de casa. Seu tênis é All Star azul-escuro, e o cabelo loiro está preso em um coque, com duas mechas soltas emoldurando seu belo rosto.
Eric… bom, Eric é o garoto rico e problemático que não se importa com os estudos. Adora festas, bebidas e meninas. Já ficou com quase todas as garotas da nossa turma e, nos últimos quatro meses, já dormiu algumas vezes com Cynthia. No fundo, eles têm uma queda um pelo outro, mas nada sério; Eric continua sendo um babaca mulherengo. Ele veste uma jaqueta de couro vintage, camisa branca transparente que deixa o peito à mostra e botas pretas. Seu cabelo castanho claro ondulado completa o visual.
"Onde você estava, garota? Por que demorou tanto para chegar?" Cynthia me interroga assim que se aproximam.
"É que acordei meio tarde hoje… foi só isso. Não se preocupe. Já estou aqui, e isso é o que importa, não é?"Respondo com um sorriso. Até Eric chegou antes de mim! Isso está pior do que eu imaginava.
"Espero que seja só isso. A gente prometeu que não haveria segredos entre nós, lembra?" Quase esqueço da promessa que fizemos há quase quatro meses.
"E que nada estragaria a nossa amizade..." Termino, provocando-a.
"Sim! Eu lembro, mamãe!" Ela responde com um suspiro acompanhado de sorriso.
"Vaca." Ela me dá uma cotovelada no ombro, e rimos.
"Eu não sou uma vaca." murmuro, mas sou pega desprevenida com um abraço.
"Claro que não é." Posso sentir a delicadeza dos seus lábios ao beijar minha bochecha. Fico feliz com o gesto.
"Você parece muito cansada. Não me diga que andou lendo aqueles livros ridículos sobre amor até tarde!" Ela revira os olhos, e nos desgrudamos do abraço. Cynthia me conhece bem; sei que está certa. Estou exausta, mas não precisava culpar os livros por isso.
"Cynthia!" Grito.
"O que?" Ela responde, como se eu a estivesse incomodando.
"Não são ridículos!" Deixo claro.
"Não fode? Você ainda continua lendo essas bobagens! Que porra é essa? Quem lê uma merda dessas em pleno século XXI?" Eric intervém.
Olho para ele e suspiro, sem dizer nada. Não vou perder tempo explicando meus motivos, mesmo que quisesse. Conheço o tipo de pessoa que ele é.
"Parem de ser chatos! Ler livros românticos é bem legal." Sam me defende, como sempre.
"Até parece!" Cynthia resmunga baixinho.
"Não seja irritante." Dou um sorriso cínico de lado para Cynthia. Segundos depois, uma voz desagradável nos interrompe.
"Meus pais viajaram para a merda da Itália e só voltam em duas semanas. Estou organizando um festão para esse final de semana. Vai ser legal..."
Itália não é uma merda. Ele só fala assim porque pode ir quando bem entender. Eu, ao contrário, ficaria muito feliz se tivesse a chance de conhecer aquele lugar. Nunca saí de Moçambique. Bom… para a África do Sul fui, mas ainda estava na barriga da minha mãe. Praticamente eu nem existia, então não conta.
"Duvido que seja." Corto Eric sem deixar que termine. Não sei por que o interrompi, mas algo me diz que não vem coisa boa por aí.
"Mais legal do que o conjunto de manada de merda de livros que você tem no seu quarto." Grosso.
"Manada é um conjunto de animais da mesma espécie que estão juntos ou vivem..." Engulo em seco e respondo.
"Seus livros são da mesma espécie. Romances babacas." Ele esbraveja.
"Você quem é um..." Desisto de terminar a frase. Não vale a pena discutir.
"O quê? Um babaca?" Ele bufa, provocador.
"Comentários de garotas nerds que mal sabem da vida não me interessam." Revira os olhos.
"Não seja babaca." Sam o adverte, mas Eric continua, ignorando o aviso.
"Vários quartos estarão disponíveis para caso vocês, sabem... Se quiserem levar ‘namorados ou namoradas’ e, sei lá, dar uma trepada gostosa, por exemplo. Bom, os quartos estarão prontinhos para vibrar. Vai ser divertido!" Ele fala num tom ufanista, acariciando o próprio peito para fazer charme. Esse garoto se acha demais!
"Que bizarro!" Sam faz cara de nojo.
"Eu acho que você não deveria dar uma festa enquanto seus pais estão viajando. Em vez disso, deveria se comportar até eles voltarem." Sam tenta trazer Eric para a realidade.
Pela cara dele, já imagino a resposta.
"Eu até ligaria para a sua opinião, mas estou sem créditos!" Eric dispara com sarcasmo.
Sabia!
"Nossa! Você é nojento! Quem leva um monte de gente para casa só para fazer sexo quando os pais viajam? Você é um psicopata da pior espécie!" Esbravejo, incrédula com a festa idiota que ele descreve.
"Não nojento, querida, gostoso. Foi isso que você quis dizer." Ele pisca para mim. Cynthia parece desconfortável, e não entendo como consegue gostar de alguém assim.
"Não enche." Murmuro, tentando me afastar. "E claro que não vou. Eu não faço esse tipo de coisa."
Quero encerrar logo esse assunto, que só me deixa desconfortável.
"O quê? O que você não faz, Wanessa?" A voz dele me cutuca de novo, cheia de malícia. "Você não bebe? Ou não trepa com seu namorado?" A curiosidade estampada no rosto dele me enoja.
"Porque, do jeito que você se preocupa com os estudos, é demais! Acho que nem tem tempo para fazer algumas safadezas. Viva a vida, aproveite o tempo! Você é jovem, precisa se soltar, certo? A gente nunca sabe o que vem pela frente. Aproveita!"
Olha só quem quer me ensinar sobre a vida… Um garoto que mal sabe o que isso significa.
Mas, segundos depois, um pensamento atravessa minha mente: e se ele estiver certo? Talvez eu devesse aproveitar mais. O tempo não volta. A vida precisa ser vivida intensamente.
"Eu não vou!" Grito, firme.
"Eu também." A voz de Sam se junta à minha. "Estarei fora da cidade nesse final de semana, então não vai dar." Ele desliza os cabelos para trás pela segunda vez no dia. Não esperava nada diferente dele; Sam nunca foi de festas idiotas como as do Eric.
"Não sabe o que perde." Eric insiste.
"Sei sim. Um monte de gente bêbada fumando maconha na sua casa enquanto seus pais viajam." Sam responde com calma.
Eric solta um chiado de raiva, mas Sam não dá a mínima.
Eu, por minha vez, o encaro de frente. É aquele olhar meu, familiar, que sempre acaba em alguma besteira. Alguma merda bem merdada, na verdade.
"Respondendo à sua pergunta..." começo. Pela cara dele, percebo que já esqueceu qual pergunta fez.
“Qual?” Ele pergunta. Não dou voltas e respondo sem demora:
“Primeiramente, eu não bebo. E segundo, nunca me deitei com nenhum homem. Nunca tive namorado. Por isso, nunca precisei ‘trepar’.” Digo rapidamente. No mesmo instante, me arrependo do que acabei de confessar. Vejo todos de boca aberta, com exceção da Cynthia. Ela sempre soube disso; entre nós não existem segredos.
“Isso é verdade?” Sam indaga. Pelo seu rosto, parece tão surpreso quanto Eric. Engulo em seco antes de responder:
“Claro, não inventaria uma coisa dessas.” Respondo, tentando parecer o mais relaxada possível. Que tipo de tola sou eu? Quem sai contando para rapazes que ainda é virgem? Nem sei por que revelei isso. É algo íntimo demais. Deve soar estranho ver uma universitária ainda virgem. Que vergonha!
“Que pena, linda, você não faz ideia do que está perdendo. Quando se sentir pronta, venha que eu te dou umas aulas. Sei fazer coisas incríveis com a língua. Você vai adorar.” Ele me encara com um sorriso malicioso. Sam o ameaça com um olhar firme, e ele recua. Espero que o assunto morra aqui. Eu não deveria ter revelado.
“Qual é a sua?” Cynthia dispara, exaltada. Alguém está com ciúmes.
“Fica calma! Eu só estava brincando com ela.” Ele retruca. Seu tom de voz é descontraído, demonstrando claramente que não percebe o ciúme de Cynthia.
“Não foi o que pareceu.” Ela rebate. Cynthia sabe que eu jamais daria atenção para um garoto que lhe interessa. Pior ainda sendo alguém como Eric. Ela insiste em tentar fazê-lo deixar de paquerar outras garotas, mas no fundo sabe que é uma missão quase impossível. Todos nós sabemos disso.
“E daí?” Eric resmunga. Afunda as mãos nos bolsos.
“Se liga, garota!” O insolente tira a mão esquerda do bolso e faz um gesto de telefone.
“Quem olha até pensa que somos namorados e que você está tendo crises de ciúmes.” Ele resmunga, depois se vira para perguntar a Sam se quer acompanhá-lo até a lanchonete próxima ao portão da universidade para tomar uma Coca-Cola. Sam aceita; em seguida ambos se despedem de nós e se afastam.
4
Cynthia parecia triste. Não sabia exatamente o que dizer para confortá-la. Não suporto vê-la magoada por alguém como Eric. Gostaria de dizer para ela esquecê-lo, porque, na verdade, ele é um garoto mimado! Sempre teve tudo e duvido que queira abrir mão da “vidinha” de playboy que tem por ela. Nem por ela, nem por ninguém. Todas as garotas da turma conhecem o comportamento desprezível dele, por isso ninguém o leva a sério.
“Vem cá.” Digo, levantando os braços, pedindo um abraço. Talvez isso a tranquilize. Meu abraço é correspondido com um sorriso que transmite conforto. Coloco minhas mãos em suas costas, fazendo movimentos circulares para que ela se acalme.
“Você sabe que não vale a pena ficar triste por ele. Não sabe?” Pergunto, segurando seu rosto com as duas mãos, implorando para que me olhe. Ela me encara.
“Eu sei. Gosto dele, apesar de tudo. Eric é um escroto.” Ela lamenta. Dou um suspiro de alívio por Cynthia estar sendo sincera consigo mesma.
“Pois é. Ele é bem idiota, na verdade.” Digo. Nos desgrudamos vagarosamente e sorrimos.
“Você pode me acompanhar ao centro comercial?” Ela muda de assunto. Não sei se isso é bom ou não, mas espero que seja a primeira opção.
“Preciso comprar algumas roupas. Por favor?” Cynthia cruza as mãos, como se estivesse rezando. É bom saber que ela não vai ficar se deprimindo por causa dele. Mas…
“Não vai dar, amiga. Preciso estudar. Você sabe, minha mãe…” Tento fazê-la entender. Não é só pela minha mãe, estou exausta. Mal dormi à noite.
“Por favor, Nessa.” Cynthia implora, ainda com as mãos cruzadas.
“Eu sei que, se sairmos, voltaremos tarde! E minha mãe vai gritar comigo por isso. Você sabe o que ela pensa sobre nossa amizade. Não que eu me importe com isso. Só não quero brigar.” Tento explicar.
“Às cinco e meia da tarde eu te deixo em casa.” Ela jura.
“Não insista, Cynthia. Eu não vou.” Mordo os lábios.
“E você não pode jurar em vão com tanta facilidade.” Conheço-a o suficiente para saber que está mentindo e não é uma boa ideia jurar em vão.
“Por favor, Biscoitinho lindo.” Ela começa a brincar, e eu suspiro irritada.
“Eca! Não me chama assim! Isso é ridículo.” Murmuro, fazendo uma expressão de nojo.
“O que foi, Biscoitinho de leite?” Ela lambe os lábios inferiores e me encara com um sorriso irritante, o que me deixa ainda mais incomodada. Qual é?
“Cynthia!” Chamo sua atenção.
“Só quando você aceitar ir.” Ela avisa, sem parar de fazer essas coisas irritantes. Jogo baixo.
“Você está sendo muito infantil.” Aviso. Claro que está, e ela sabe disso.
“Relaxa, linda, você está muito com gosto de leite hoje.” Ela continua, agora fazendo sons exagerados. Isso é patético.
“Biscoitinho! Ai, nossa! Você está deliciosa… continua…” Faço um olhar de irritação. Ela me encara.
“O que foi? Estou falando dos biscoitos de leite deliciosos.” Consigo ver que ela está chupando os dedos com muito gosto, claramente para me irritar. Nem parece alguém que, poucos instantes atrás, levou um baita fora.
“Cynthia, para com isso!” Aviso entre dentes. Sei que ela não vai parar, pelo menos não até eu me render e ir com ela ao centro comercial.
“Só quando…” Ela revira os olhos. “Sinto muito, não.” Balanço a cabeça negativamente. “Isso, você está deliciosa, não vou parar de comer você…” O que há com ela? “Não quero brigar com a minha mãe. Não insista, Cynthia!”digo. Ela para de fazer aquelas coisas nojentas e me olha como se não acreditasse no que acabei de dizer. “Wanessa, por Deus! Que puta medo é esse que você tem da sua mãe! Você já tem dezoito anos, porra! Pode viver sua vida do modo que quiser. Já não precisa de uma babá para dizer o que fazer, não acha?” Cynthia fala com toda sinceridade. É a segunda vez hoje que alguém me diz para me soltar porque a vida é para ser vivida sem medo. “Pois eu… é, eu sei.”“Você tem toda razão.” É o que tento dizer, mas as palavras não saem. “Vou entender isso como um sim.” Parece que ela acha que já tem total controle sobre a minha resposta. Dou um suspiro profundo e pergunto: “Tenho opções?” Sei que não tenho; só sou uma idiota fazendo uma pergunta retórica. “Claro que você tem.” Olho para ela, franzindo a testa. Ai?
“Posso saber quais são?” pergunto, duvidando que exista alguma opção. Abro a boca e balanço a cabeça. “De vir comigo ou ir comigo.” Lanço um sorriso, como quem não acredita no que ouve. “E por acaso, para você isso se chama opção?” Faço um olhar mordaz no momento em que pergunto. “Não. Esse é apenas meu jeito educado de dizer que você não tem escolha, nerd.” Ela ri. Se a intenção era fazer graça, desta vez não funcionou como a piada dos biscoitos — admito que foi divertido vê‑la fazendo aquelas babaquices ridículas. Nojentas. “Você é surreal.” Fico boquiaberta, como se visse algo incrível.
“E não vale nada.” Termino a frase, olhando bem fundo nos seus olhos. “Eu sei.” Ela confirma. “Agora vamos.” “Não quero ter que puxar você pelos cabelos daqui.” Faço que sim com a cabeça. Caminhamos em direção ao estacionamento da UCM, rumo ao carro dela. O pai dela a presenteou com ele logo depois que ela completou dezoito anos, no ano passado, enquanto frequentava o ano propedêutico. O carro é cinza, um Honda Fit. Ela diz que é uma lata velha; eu discordo — ficaria muito feliz se minha mãe me desse um desses. Seria demais para mim.
Quando entramos no carro, ela coloca a música “Just Say You Won’t Let Go”, de James Arthur. Nós duas amamos essa música — embora eu ame mais; ela tenta gostar porque eu gosto. Cantamos durante todo o trajeto. A viatura é confortável; os bancos são firmes e cheiram a novo. Ao chegarmos ao centro comercial, entramos na loja de roupas. Ela vira a verdadeira perdulária. Cynthia escolhe inúmeras peças: saias bem curtas — e eu não posso reclamar; esse é o jeito dela, e já estou acostumando‑me. Apesar das saias curtas que mostram demais as pernas, fico um pouco preocupada. Cynthia não é rica, mas a situação da família é estável o suficiente para ela ter quase tudo o que quer. Decido não comprar nada — não tenho dinheiro para roupas. Cynthia se oferece para comprar algumas peças para mim, mas recuso.
“Por favor, Wanessa. Você precisa experimentar este.” insiste ela, apontando para o vestido pendurado na vitrine enquanto caminhamos até lá. “Nem pensar! Não visto isso de jeito nenhum.” recuso logo que entramos. Como ela pensa que eu vou usar aquilo? “Para de bancar a durona, caramba!” ela grita, com as mãos no bolso traseiro da saia jeans. “De jeito nenhum!” insisto. Quando me aproximo, percebo que o vestido não é tão feio quanto imaginei. Mesmo assim, não me sentiria à vontade usando aquilo — parece elegante demais, além de sedutor e curto. Claro que tinha que ser curto. Gosto da Cynthia.
“Por favor.” ela pede. Se o vestido é tão importante, por que ela mesma não experimenta? “Experimenta você.” digo, sem rodeios. Eu não quero isso.
“Eu até que experimentaria. Sabe, não tenho preguiça com esse tipo de coisa...” reviro os olhos. “Esse vestido tem a sua cara.” Ela olha para a peça como se fosse algo divino. Por que Cynthia é tão obcecada por roupas novas? São só roupas! Ainda assim, ela caminha até o manequim onde o vestido está e eu a sigo. Tá, admito: o vestido não é horroroso.
“Por acaso ele disse para você que tem a minha cara?” ironizo. Ela suspira.
“Fazemos assim: você experimenta. Se não gostar, deixamos. Prometo.” Acabo concordando, embora certa de que não vou levar. Cynthia chama uma atendente loira — alta, com ar mais de recepcionista de hotel do que de vendedora de loja, pelo modo de se vestir: colete preto, saia formal acima do joelho, camisa branca, gravata‑borboleta e cabelo preso em coque.
“Caramba! Você está gata demais.” diz Cynthia quando experimento o vestido verde idêntico ao da vitrine. Não sei se ela fala por ser verdade ou para me convencer a levar — adivinha? Não vou.
“Se eu fosse homem, juro que te comeria agora mesmo!” ela fala, olhando‑me de cima a baixo, boquiaberta. Reviro os olhos.
“De costas, você olhando para o espelho. Aposto que seria bem gostoso te comer nesse vestido enquanto te observo pelo espelho...”
“Cynthia!” solto um gritinho ameaçador, nada sério.
“Desculpa. Não foi mais eu que falei.” Ela ergue os braços em rendição. “Nossa!” “Essa não sou eu, ou sou?” Quando me aproximo do espelho de provador, não consigo acreditar no que vejo: quase não me reconheço. “Pode acreditar que é.” responde Cynthia, óbvia e orgulhosa por me ter convencido — meio que forçado, na verdade.
“Você deve usar isso na festa do Eric.” ela diz, apontando para o vestido em meu corpo, fingindo surpresa. Cynthia tapa a boca com as mãos, fingindo engasgar.
“Eu já disse que não vou.” deixo claro.
“E você também não deveria.” replico. Peço a Cynthia que me ajude a fechar o zíper; meus braços não alcançam. Realmente ficou lindo.
“Por que não?” ela pergunta, impaciente. “Sério, Cynthia? Ele nem se importa com você! E, além disso, não se arrependeu pelo jeito que te tratou hoje. Mesmo assim, você pensa em ir a essa festinha ridícula?” Não consigo acreditar que, depois de ser um idiota com ela, Cynthia ainda cogite ir.
“Não é ridícula e…” ela retruca, tentando defendê‑lo. “Além do mais… ele me mandou uma mensagem pedindo desculpas. Faz pouco tempo.”
“Uma mensagem? Sério isso?” pergunto, bufando. Que absurdo! Ela é inacreditável — desta vez Cynthia superou o ranking das mulheres mais burras da humanidade, se essa lista existisse. “Por favor, vamos mudar de assunto.” sou covarde.
“Tem certeza?” “Tenho.” ela responde de imediato. “Certo.” concordo, balançando a cabeça. Claro que não concordo; apenas respeito a decisão dela de não falar sobre isso. “Bom, eu gostei desse vestido e de como fica em você. Querendo ou não, terá que levar. Fim de papo.” Ela se oferece para pagar depois de eu recusar várias vezes. Acabo cedendo.
Sei que, se continuar dizendo não, ficaríamos horas ali. Então decido aceitar. “Da próxima, eu que pago.” aviso. Ela concorda, sorrindo.
5
Depois de horas escolhendo roupas — curtas, por sinal — entramos num restaurante fast-food que chamamos de Comilão, onde aguardo os hambúrgueres com batatas fritas enquanto Cynthia faz os pedidos. Quando me sento na cadeira dura, que parece bem fixa, à minha frente há um prédio que aparenta ter uns nove andares, se não estiver errada na contagem. Consigo ver vários homens vendendo chinelos, celulares e roupas velhas pelo passeio do prédio. Mais adiante, no primeiro andar, vejo a loja da operadora móvel Vodacom. Há uma multidão enorme de pessoas do lado de fora precisando de atendimento e outra, menor, que parece ser do caixa eletrônico. Olho para cima; no segundo andar do prédio “TVM”, vejo as letras gigantes da rede de televisão pública do país, que tem o mesmo nome.
Percebo que o andar da televisão está em péssimas condições: os vidros das janelas estão quebrados e a pintura está completamente desgastada. Isso me deixa um pouco triste.
“Espero que gostem.” Uma menina vestindo um avental vermelho com desenhos de hambúrgueres e um chapéu branco, com o nome “Comilão”, diz educadamente. Ela deixa os pratos com os hambúrgueres sobre a mesa, avisando que enviaria alguém trazer duas latas de refrigerante. Pela aparência, parece ter uns dezesseis anos. Começo a me perguntar por que ela está aqui nos atendendo, ao invés de estar estudando ou fazendo outra coisa.
Assim que terminamos de comer, vejo desenhos de picolé sobre a sorveteria ao nosso lado esquerdo. Não tinha reparado antes. “Eu quero esse.” Cynthia aponta para o gelado de água, que consiste em um bloco congelado, feito de suco de fruta ou bebida doce, habitualmente retangular ou cilíndrico, com um palito.
“Eu detesto isso!” Aponto para o picolé que ela está lambendo com todo gosto.
“Prefiro esse.” Olho para o sorvete de baunilha em uma taça, onde uma mulher linda, de saltos altíssimos e vestido azul-marinho de alça, o leva no balcão da sorveteria. Assim que meu sorvete fica pronto, me delicio com ele enquanto observo Cynthia fazendo expressão de nojo. Ela diz que sorvete é horrível, que não deveria nem existir, que o gosto é esquisito, e que picolé é bem melhor. Não acredito nisso — sorvete é muito mais gostoso que picolé. Todo mundo sabe disso. Embora a diferença não seja grande, no final, ambos são gelados. Discutimos sobre isso por vários minutos até que olho para o relógio do celular. Entro em estado de choque. “Já são oito e meia da noite! Minha mãe vai me matar.” Minhas mãos se apoiam na cabeça nesse momento.
“Você não cumpriu a promessa de me deixar em casa às cinco e meia.” Olho para Cynthia. Sei que tenho parte da culpa; deveria ter controlado o horário e alertado ela sobre isso. Estava me divertindo tanto que esqueci das horas, assim como ela.
“Provavelmente não percebi a hora passar.” Ela mente, desviando o olhar. Sei quando alguém está falando a verdade, e nesse momento ela está mentindo.
“Eu imagino.” Olho para ela fixamente, tentando extrair alguma verdade. Nada acontece.
“Para de ser chata! Levanta que eu te levo pra casa.” murmura Cynthia ao se levantar. A mãe dela não determina a hora de chegada como a minha, então ela não se preocupa tanto com isso. Tiro as mãos da cabeça e ela as segura, levando-me até o carro. A viagem é cansativa; ninguém quer falar. Estamos exaustas.
“Está entregue!” avisa. Abro a porta e saio depressa. Dirijo-me ao portão de casa.
“Tchau, nerd!” despede-se Cynthia. “Espero que a sua babá tenha deixado a mamadeira pronta.” Grita, se divertindo com a piada sem graça, a cabeça ainda para fora da janela do motorista.
“Você não presta.” Grito, balançando a cabeça.
“É, você já disse isso hoje.” Ela se gaba. Sério? Quem tem orgulho de não valer nada? Cynthia tira a cabeça da janela, liga o carro e vai embora.
Abro a porta torcendo para que minha mãe não tenha ouvido o que Cynthia disse. Ela é brincalhona; gosta da minha mãe, embora esta não sinta o mesmo.
Quando fecho a porta, sou dominada pelo cheiro forte que rapidamente me dá água na boca. Corro até a cozinha e encontro minha mãe preparando uma lasanha de frango, que parece deliciosa. Apesar de já ter comido bastante com Cynthia, não resisto a provar essa maravilha, que parece quase perfeita.
“Boa noite, mãe!” cumprimento-a com um abraço pelas costas.
“Boa noite, meu amor. Você demorou!” Ela me recebe com um sorriso.
“Eu sei, mãe…” respondo.
“É que o dia foi muito cheio, tive muitas coisas para fazer… foi por isso.” Respondo, abrindo a geladeira para pegar uma garrafa de água. Decido não falar sobre a saída com Cynthia, nem sobre a falta de aulas na faculdade. Não quero brigar com ela.
“Vou tomar um banho antes de jantar. Estou exausta.” informo, segurando um copo de vidro e dando um gole de água.
“Tudo bem. Não demore, o jantar estará pronto em alguns minutos.”
“Certo, mãe.”
Vou para o banheiro, tomo banho e, ao chegar no quarto, visto meu pijama cor-de-rosa com desenhos de borboletas azuis, como sempre que minha mãe compra. Não acredito que continuo vestindo isso até hoje! Por que tudo nesse quarto tem que ter borboletas? O fato do meu nome, “Wanessa”, significar “como uma borboleta”, não quer dizer que eu tenha que ter tudo com desenho delas. Minha mãe precisa parar de comprar coisas com borboletas. Faço um coque no cabelo e me jogo na cama.
6
Quando pego no celular, já são cinco e meia da manhã. Oi, mocinha, você está aí? Dou de cara com uma mensagem de Sam assim que pego o aparelho. Pelo visto, caí no sono e nem percebi. Parece que minha mãe não quis me acordar.
Levanto da cama e vou à cozinha. Preparo meu café e o tomo antes de me arrumar. Tento fazer tudo o mais rápido possível para não deixar minha mãe brava como no dia anterior. Decido vestir uma saia vermelha acima do joelho, blusa branca de mangas compridas e calço melissas vermelhas. Prendo o cabelo em um rabo-de-cavalo com uma fita preta, formando um lacinho. Pego a mochila e me dirijo à sala. Minha mãe está sentada, me esperando. Ela veste um vestido justo azul-escuro e sandálias pretas simples. Seus cabelos estão bem cacheados, como sempre. Por que ela exagera tanto na maquiagem ultimamente? O rosto dela está mais claro que o corpo.
Ela deveria aceitar que não é pintando exageradamente a cara de branco que vai deixar de ser negra. Começo a ter certeza de que, se minha mãe tivesse dinheiro para fazer as cirurgias que o Rei do Pop, Michael Joseph Jackson, fez para mudar sua aparência, ela faria. Embora ele tivesse motivos fortes para isso.
“Bom dia, mãe. Como você acordou?” Ela se levanta e dou um abraço nela. Minha mãe parece feliz com isso.
“Bem, amor. Como acordou? Ontem você estava dormindo e pensei que estivesse muito cansada. Não quis acordar você.” Ela explica.
“Realmente estava muito cansada por causa do passeio com a Cynthi… quero dizer, por causa das aulas. Foram intensas!” minto. Não acredito que quase disse à minha mãe que saí com Cynthia ontem. Onde está minha cabeça? Nas nuvens, com certeza.
“Quer comer alguma coisa?” pergunta minha mãe.
“Posso esquentar a lasanha que sobrou.” Ela sorri. Gosto de vê-la sorrir. É bem melhor do que…
“Não, mãe. Estou sem fome. Vamos logo.” Ela faz que sim com a cabeça e saímos.
Ainda bem que ontem não tivemos aulas e não precisei fazer nenhum trabalho; caso contrário, estaria morta, obviamente.
“Não me lembro de como peguei no sono ontem à noite…” murmuro durante o trajeto.
“Chegamos!” ela anuncia. “Você deveria colocar um pouco de brilho labial para umedecer os lábios.” Sério?
“Sem chances, mãe.” digo. Não sou boa com essas coisas de maquiagem. Mesmo que fosse algo que parecesse mais com óleo de cozinha perfumado do que com um produto cosmético usado para dar brilho aos lábios.
“Você é quem sabe.” Ela retruca. Reviro os olhos.
“Está seco demais.” Minha mãe resmunga baixinho, como se não quisesse que eu ouvisse. Sei bem qual é o jogo dela; claro que ela queria que eu escutasse.
Dou um abraço nela, me despedindo, e ela vai embora. Tiro os fones de ouvido da mochila e os conecto ao celular, que estava no bolso de trás da saia. Caminho até os portões da universidade ouvindo a música Thank You, Next, de Ariana Grande. Ariana é uma das cantoras que mais amo no mundo.
De repente, alguém me dá um empurrão por trás e quase tropeço no chão. Parece que foi de propósito. Viro-me para ver quem é.
“Oi.” digo, mas ele continua andando, sem nem se virar para pedir desculpas.
“Oi.” grito. Ele se vira para me olhar. Por um instante pensei que fosse se desculpar, mas nada disso acontece.
“O que é?” pergunta. Seu tom de voz não demonstra arrependimento.
“Você não percebeu que me empurrou?” Ele olha para mim, mas fica em silêncio. De certeza, está nem aí. Nota-se.
“Você não ouviu? Fiz uma pergunta.” Pergunto.
“Vi. Mas e daí?” Ele só pode estar brincando!
“Você deveria se desculpar. Isso é o que pessoas normais fazem, não acha?” Pergunto.
“Eu não quero ser normal.” Ele diz. Pelo tom, parece mais um aviso do que uma afirmação.
“E eu não peço desculpas.” Sua expressão é claramente sádica. Grosso.
“Você deveria ser mais educado com as pessoas.” Cruzo os braços, meu rosto tomado de fúria.
“E quem você pensa que é para me dizer o que fazer?” Ele se aproxima. Não sei se é pergunta ou afirmação; sua forma de falar não está clara. Fico em silêncio. Ele não parece ser daqui, não sei de onde, mas não é moçambicano. Seu português é perfeito, mas a pronúncia soa como inglês.
“Não precisa ter medo de mim.” Sua expressão é fria. Quem disse que estou com medo? Só um pouco, na verdade. Ele coloca as mãos no bolso e eu descruzo os braços.
“Eu não mordo. Só um pouco.” admite ironicamente.
“Sai fora.” Coloco minhas mãos em seu peito para me afastar, mas não consigo; ele é bem mais forte. Tento empurrá-lo, mas ele não se move. Por que não passa ninguém por aqui? Esta é a entrada principal, deveria ter gente passando. Assim poderia pedir socorro ou até inventar que ele está me ameaçando. Admito, não teria coragem de fazer isso; não sou sem alma como ele.
“Ninguém me diz o que fazer. Ainda não ficou claro?” pergunta seriamente. Não consigo responder. Este garoto quer briga, mas não vou dar esse gosto a ele. Ele me olha, enfim se rende.
“A gente se vê, nerd.” O rapaz dá de ombros e quase se afasta, mas, em segundos, dá meia-volta.
“Você deveria se livrar dessas melissas. São horríveis e parecem aquelas coisas ridículas que os palhaços colocam nos pés para se apresentar no circo.” Ele aponta para minhas melissas vermelhas antes de ir embora.
“Babaca.” Digo, esperando que ele me escute, embora pareça que já está distante. Fico furiosa, mas logo começo a me perguntar por que ele me chamou de nerd. Pelo que sei, a única pessoa que me chama assim é Cynthia, e nem sei por que ela faz isso no início da conversa. Eu não sou nerd.
“É muita coincidência.” Bom... prefiro acreditar que seja apenas isso.
Espero não voltar a vê-lo. A universidade é grande, talvez ele esteja em outro departamento.
O único mais próximo do nosso é o de Ciências Sociais e Humanidades, e só a ideia de que ele possa estar na Faculdade de Ciências e da Saúde me apavora.
“Não. Nunca mais vou cruzar com ele. A universidade é enorme.”
7
Sam está conversando com alguns colegas no momento em que me aproximo. Ele faz um gesto com a mão, chamando-me para chegar mais perto. Quase sempre ele é o primeiro do nosso grupo a chegar à universidade. Seu jeito pontual é uma das muitas qualidades que ele tem.
“E aí? Como você está?” — pergunta Sam, assim que chego mais perto.
“Oi.” Cumprimento os colegas com um aceno de mão.
“Olá.” — eles respondem sorrindo. Sam está lindo como sempre. Hoje veste uma calça jeans clara, camisa preta e ténis pretos. Suas roupas são chiques. Caríssimas.
“Bem.” — digo, sorrindo para ele, e ele devolve o sorriso.
“Alex.” — Sam o chama no momento em que eu e ele quase nos afastamos.
“Oi?” — o amigo responde.
“Passa na minha casa mais tarde. Não esqueça que temos apenas um mês antes dos exames.”
Ele confirma com um gesto.
Mil imagens de como seria a mansão gigante de Sam boiam na minha mente — embora nenhuma chegue a ser satisfatória. Sempre fico dando voltas quando ele toca no assunto de eu ir à casa dele. Pensando bem, da próxima vez que me convidar, eu vou. Ele é meu amigo, não seria nada demais.
Ao contrário de mim, Sam conhece minha casa. Já me deu carona várias vezes na volta da universidade, embora nunca tenha me deixado na porta, por medo da “senhora bomba” que é a minha mãe. Eu disse a ele que ela é superconfusa e que não iria gostar nada de nos ver juntos — mesmo ele sendo exatamente o tipo de rapaz que ela quer pra mim no futuro. Por conta disso, Sam sempre me deixou no portão do Hélder, o nosso vizinho esquisito da árvore irritante. Ainda bem que ele não é fofoqueiro e nunca contou à minha mãe que me viu várias vezes descendo do carro do Sam.
Nos afastamos do grupo, indo em direção ao anfiteatro onde costumamos ter aulas.
“Quando começa a se preparar para os exames?” — Sam pergunta assim que chegamos à porta da turma.
Pra falar a verdade, eu ainda nem tinha pensado nisso. Onde ando com a cabeça?
“Talvez daqui a uma semana?” — minha voz sai meio esquisita. Algo que seria uma afirmação acaba soando como uma pergunta. Muerdo o lábio inferior. Sam ri.
“Você é engraçada, sabia?” — ele diz, encostando-se à parede. Em seguida, prende uma mecha rebelde atrás da minha orelha. Fico envergonhada com seu gesto carinhoso. Ele abre a mochila e tira algo.
“Pra você.” — Sam me entrega um livro. Quando seguro, observo a capa. Outro livro cai da mochila, o que me distrai.
“Romeu e Julieta.” — lemos ao mesmo tempo.
Ele o apanha e se levanta.
“É a história mais trágica de amor que já li na vida.”
Seguro as lágrimas. Essa história sempre me emociona.
“É o amor mais verdadeiro que já li, e não me canso de reler.” — ele continua, orgulhoso em dizer que é a décima quarta vez que lê.
Ele se espanta quando digo que já li umas vinte e sete vezes nesses quatro meses.
“Qual é a conclusão que você chegou depois de ler esse livro?” — pergunto.
Ele sorri — um sorriso contagiante.
“Cada um entende essa história do seu próprio jeito. Uns criticam, outros não... A história de Romeu e Julieta é uma das histórias de amor mais verdadeiras.”
Estamos tão imersos no assunto que nem percebemos que estamos quase na porta do anfiteatro, dificultando a entrada e saída das pessoas.
“Alguns dizem que a história só ensina que, quando você ama de verdade, o melhor a fazer é se matar. Ou que ela se resume em: eu te dei corda e você me deu o nó.”
Lágrimas escorrem pelo meu rosto. É impossível evitar. Esse romance mexe com minhas emoções.
“A verdade é que Romeu e Julieta nos ensinam que, por mais que o mundo todo fique contra, se o amor é de verdade, você precisa lutar com todas as forças. Não significa que as pessoas devam se matar por amor. Significa que devem lutar para ficarem juntas.”
Ele usou as palavras certas. É difícil encontrar alguém que defenda o amor de Romeu e Julieta. Muitos gostam da história, mas no fundo a maioria só critica o final trágico, dizendo que ensina que, quando alguém ama de verdade, não pode ficar com a pessoa e precisa morrer por ela.
Não! Romeu e Julieta ensina o que é o amor verdadeiro — ensina a lutar por ele, mesmo quando o mundo inteiro está contra você, até sua própria família.
Não consigo me conter e o abraço. Suas palavras me emocionaram. Eu e ele pensamos iguais.
“O professor Jacob chega em dez minutos.” — alguém avisa da porta, no instante em que me desgrudo do abraço. Não deu tempo de ver quem foi.
“A despedida é uma dor tão suave que eu diria boa noite até o amanhecer...” — Sam pronuncia perfeitamente o trecho do livro.
“Não é uma despedida. Só vamos pra aula do Jacob.” — digo.
Ele sorri. Eu também.
“Belo Desastre.” — mudo de assunto assim que leio o título do livro que Sam me ofereceu.
“Você vai gostar.” — Sam guarda Romeu e Julieta de volta na mochila.
“Vou sim.” — confirmo, sorrindo. Claro que vou. Já ouvi falar muito sobre esse livro. Dizem que é ótimo — só nunca tive oportunidade de ler.
“Me desculpe por não responder sua mensagem. Ontem foi um dia bem cansativo.” — me justifico enquanto caminhamos até a turma.
“Não se preocupe, eu entendo.” — responde ele. Sam é muito compreensivo.
O anfiteatro está cheio, mais cheio que o normal. O dr. Jacob deve ser muito querido — nas aulas dele, quase todos os estudantes aparecem. Não posso dizer o mesmo dos outros professores.
“Você está linda. Quer dizer...” — Sam sussurra em meu ouvido, logo que nos acomodamos na terceira fileira. A primeira e a segunda estão lotadas. “...sempre está.” — completa.
“Obrigada.” — agradeço com um sorriso meio desconfortável, porque ele não para de olhar pra mim, e isso me deixa um pouco nervosa.
“Você sabe que eu faria qualquer coisa por você. Pra te fazer feliz.”
Isso soa mais como uma pergunta do que uma afirmação.
“Sam, eu...” — gaguejo, mas ele me interrompe.
“Gosto de você, Wanessa. Isso nunca foi novidade. Me diz se tenho alguma chance com você — por menor que seja.”
Olho para baixo por alguns segundos, mas ele levanta meu rosto, pedindo que eu o encare.
Por um instante, fico sem palavras. Ele está me pedindo uma chance no meio da turma! E eu não sei o que dizer. Não quero magoá-lo. Sei que Sam me faria feliz — temos tantas coisas em comum que perco a conta. Ele é exatamente o tipo de rapaz que minha mãe aprovaria... mais tarde.
Eu não estou preparada para namorar alguém. Só não sei como dizer isso sem machucá-lo.
“Sam, eu... bom...” — mais uma vez, fico perdida nas palavras. Não posso dizer “sim”, porque não quero dar falsas esperanças. Também não posso dizer “não”, porque não quero feri-lo. Ele é tão legal comigo.
Por um instante, quando finalmente decido falar qualquer coisa, o dr. Jacob, professor de Psicologia Médica, entra na sala de aula. Dou um suspiro de alívio por adiar a resposta — que, cedo ou tarde, vou ter que dar.
Fico preocupada porque não vejo Cynthia nem Eric. Quanto ao Eric, decido não me importar. Ele quase nunca entra em sala. Não é da minha conta. Tenho certeza de que ele diria:
“Eu não preciso de uma babá.”
“Você quer comer alguma coisa?” — Sam pergunta assim que a aula termina.
Faço um gesto afirmativo com a cabeça. Estou morrendo de fome.
“Então vamos.”
Ele coloca o braço direito sobre meus ombros. Caminhamos até a lanchonete perto do portão de saída da universidade.
Sinto-me aliviada por ele não tocar novamente no assunto de “ter uma chance comigo”.
Fico surpresa ao ver Cynthia e Eric sentados e conversando na lanchonete — depois de ele ter sido um nojento com ela ontem.
Ela havia dito que Eric mandou uma mensagem se desculpando, e minha mente me lembra disso. Talvez tenham se resolvido.
“Por que você matou a aula?” — pergunto assim que me aproximo.
“Porque quis.” — ela responde, sem dar a mínima. Aposto que o pit boy do Eric tem algo a ver com isso.
“Jura?” — fico de boca aberta.
“Juro.” — Cynthia responde friamente.
“Cynthia, você não pode simplesmente sair matando aula desse jeito!” — aviso.
“Wanessa, você não pode simplesmente puxar o meu saco desse jeito!” — ela revira os olhos. — “E claro que posso.” — completa, encarando-me.
“Só estou preocupada com você.” — digo.
“E você sabe que não pode.” — rebate.
“Prometo que não vai se repetir. Só não queria ver aquele tipo com cara de nada enchendo meu saco com sua aula chata.” — murmura Cynthia.
Pelo que eu saiba, ela e Eric são os únicos da turma que acham todas as aulas chatas. Todas.
Começo a perceber que, na verdade, eles têm muito mais em comum do que eu imaginava.
“Eu não acho a aula dele chata. Para de ser resmungona.” — digo.
Como ela pode dizer isso? O professor Jacob é ótimo — sua aula é excelente!
Não é por acaso que todos participam. Bom, quase todos. Com exceção de...
“Pois é... também não acho.” — Sam concorda, e fico aliviada. Pensamos igual em muitas coisas.
“Lá vêm os dois nerdinhos encher a porra do nosso saco!” — Eric revira os olhos, e eu olho feio pra ele.
“Não seja tão... Eric.” — digo, com sarcasmo.
Ele ri maliciosamente. Meus olhos se voltam para Cynthia.
“Por favor, Wanessa, estou muito cansada. Mal dormi à noite e tive um pesadelo horrível. Não estou afim de sermão, tá?”
Sério? Você é péssima mentindo.
Eu sei que é mentira — só está tentando encerrar o assunto.
Meus olhos se voltam novamente para Eric.
“Nem tenta, Wanessa. Não vai rolar.” — ele avisa, impassível, olhando para Sam como se dissesse que não quer nem o sermão dele.
Tiro a língua para ele. Em troca, recebo o dedo do meio.
“Sinceramente, você é irritante!” — lanço um sorriso meigo, colocando as mãos na cintura.
Ele ri.
O garçom chega para nos atender. Sam e eu nos sentamos e fazemos o pedido: uma pizza de carne moída e duas Coca-Colas em lata — a mesma coisa que Cynthia e Eric.
“É pra já.” — informa o garçom, educadamente, antes de se afastar.
“Bom partido. Acho que ele ficou afim de você.” — Cynthia dá um chute em um dos pés da minha cadeira e começa a fazer piada sobre o garçom assim que ele se afasta.
“Não ficou.” — Sam diz, sério.
Cynthia abre a boca, mas eu a corto antes que diga alguma bobagem.
“É, também acho.” — sorrio, tentando amenizar o clima, enquanto Eric mexe no celular, completamente alheio.
“Vocês dois são tão irritantes... igualzinho à Dora perguntando por algo que está na frente dela.” — murmura Cynthia, dando uma olhada no celular do Eric pra ver o que ele faz.
“Também te amamos, Cynthia.” — Sam sorri pra ela.
“Não posso dizer o mesmo.” — ela brinca.
“E aí?” — uma voz masculina interrompe nossa conversa no instante em que Eric começa a contar sobre sua maldita festa.
É uma voz que parece familiar, mas não consigo lembrar de onde.
“E aí, galera?” — o rapaz cumprimenta.
Sam o encara, confuso.
“Quem é você? A gente se conhece?” — pergunta.
Viro-me para ver quem é — e não posso acreditar no que vejo.
Esse garoto só pode estar me seguindo!
O rapaz olha para Cynthia com uma expressão de interrogação.
“Desculpa, gente...” Cynthia começa a falar.
“Com tanta coisa na cabeça, acabei me esquecendo de contar pra vocês sobre o meu primo...”
“Não acredito!” grito, horrorizada. Todos olham para mim sem entender nada.
“Me desculpem, pensei em voz alta.” Tento disfarçar, mas Cynthia me encara confusa.
“Até parece!” ele resmunga baixo, mas sua voz o trai. Reviro os olhos, incrédula.
Não acredito que ela é familiar dele.
“Esse... bom, ele é seu irmão? Quer dizer, primo?” pergunto gaguejando. É óbvio que estou aflita.
Na verdade, estou desesperada pra ouvir um “não” — embora saiba, lá no fundo, que a resposta será “sim”.
Ela faz que sim com a cabeça.
Merda.
Com mais de sete bilhões de pessoas no mundo, Cynthia tinha que ser prima justamente desse garoto abusado!
Não é justo.
Ele me olha e lança um chiado. Qual é o problema dele?
“Esse é o Willem. Ele é...” Cynthia começa, mas ele a interrompe:
“Willy. É mais prático.”
Ele sorri de lado, e dá pra ver a irritação no rosto dela.
“Para de ser babaca. Você detesta ser chamado de Willy.” Cynthia suspira, visivelmente irritada.
“Continuando... Ele veio da África do Sul, transferido, e está no terceiro ano de Economia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanidades. Minha mãe e a mãe dele são irmãs.”
“Meias-irmãs.” ele a corrige.
Cynthia bufa e se senta novamente. Pelo jeito, não foi nada divertido apresentar o primo.
Talvez porque ele seja um grosso com ela também.
Além de saber que é primo de Cynthia, agora vou ter que suportar vê-lo quase todos os dias — nossas faculdades ficam muito próximas.
Sam e Eric sorriem para ele.
“Olá, Willem.” cumprimentam em uníssono.
Ele devolve com um sorriso nada educado.
Se acha que vou cumprimentá-lo, está muito enganado.
Eu não falo com abusados.
Quer dizer... com alguns, talvez.
Eric, por exemplo, é um abusado, mas ao menos sabe respeitar — às vezes.
Sabia que havia algo de errado nesse tal de Willem desde o momento em que me chamou de nerd.
Agora tudo faz sentido. Cynthia deve ter comentado algo sobre mim pra ele.
Mas por quê?
Por que ela contaria algo sobre mim a um garoto que nem conheço?
Não estou gostando nem um pouco disso.
9
“E você, gata, não vai me cumprimentar?”
Ele se vira para mim com a maior cara de sínico.
Mordo a língua para não falar alguma besteira. Segura, Wanessa, se segura.
Dou um suspiro longo, tentando parecer tranquila.
“Por favor, não me chame assim.”
Não consigo esconder o calor subindo ao meu rosto, mas me esforço para manter a calma.
Não acredito que acabei de dizer “por favor” para esse idiota.
“Por quê?” ele pergunta, o olhar afiado e provocador.
Abro a boca para responder, mas ele não me permite.
“Você não gosta que te chamem de gatinha?” Willem se aproxima, apoiando as mãos na mesa, me encarando de perto.
O ar parece pesar entre nós. Todos observam em silêncio, desconfortáveis.
“Qual é? Não se faça de santa. Não me diga que, quando transa com o seu namorado, ele não te chama de piranha, safada ou gostosa. Aposto que chama. E você fica bem molhadinha com isso.”
O sorriso malicioso dele corta o ar.
A mesa inteira se cala, chocada.
Qual é o problema dele comigo?
Sinto a raiva queimando sob a pele, prestes a me consumir.
Tenho duas alternativas: sair correndo, fugindo da vergonha, ou ficar e encarar o pervertido.
Fugir parece covarde.
Ficar parece arriscado — mas certo.
A terceira opção seria ignorar tudo e fingir que nada aconteceu.
Sem chances.
Levanto-me, o coração batendo descompassado.
“Qual é a sua?” grito, a voz ecoando pela lanchonete.
Cynthia me olha, surpresa e tensa, mas não me importo.
Alguém precisa colocar esse garoto no lugar.
“Tem algum problema comigo? Não fiz nada pra ser tratada assim — e já é a segunda vez hoje. Eu nem sequer te conheço!”
Minha voz vibra com indignação.
Sam se levanta, empurrando a cadeira com força.
“Qual é a sua, cara?” ele berra, batendo o punho na mesa.
“É melhor não mexer com ela. Eu juro que não me importaria em quebrar a tua cara — e não vou pensar duas vezes só porque é primo da minha amiga.”
O olhar dele é sério.
Pela expressão, dá pra ver que falava a verdade.
Willem apenas solta uma risada debochada.
“Então,” ele bate palmas, zombando, “você é o namoradinho dela?”
Aponta o dedo para Sam e depois para mim.
“E se eu for? Tem algum problema com isso?”
Sam rebate, furioso.
Os dois se encaram, o ar carregado de ameaça.
“Claro que não.” Willem responde, frio, aproximando-se.
A postura dele é de quem não teme nada.
“Não gosto de bater em ninguém. Mas mexeu com a Wanessa, mexeu comigo.”
Sam avisa, a voz firme e baixa.
“Nossa, que medo.” Willem ri, sarcástico.
“Medinho, na verdade.”
“Licença! Aqui ninguém precisa brigar.”
Eric entra no meio, afastando os dois. Finalmente uma atitude sensata.
“Da próxima, eu juro que quebro a tua cara,” Sam ameaça. “Você não pode sair por aí desrespeitando as pessoas só porque se acha o dono do mundo.”
Willem sorri de canto e, com um tom frio, responde em português perfeito:
“Talvez você quebre a minha da próxima. Eu vou quebrar a sua agora. Now, you understand?”
Fico paralisada.
De onde ele aprendeu a falar tão bem a nossa língua?
Ou será que era só mais uma provocação, dita com aquele sotaque rouco e provocador?
Sam bufa, contido.
O clima está pesado, a tensão quase palpável.
E, no meio de tudo, só consigo pensar em como aquele olhar de Willem consegue me irritar e me confundir ao mesmo tempo.
“Você sabe que posso acabar com você, não sabe?” — Willem avisa, confiante. Há algo nele que não engana: treino, disciplina. Os braços são visíveis mesmo por baixo da jaqueta de couro; não são exagerados, mas bastam para perceber que pratica algum esporte com seriedade.
“Calem a porra da boca, os dois!” — Cynthia se aproxima, tentando separar os dois.
“Sinto muito por te desapontar, mas acho que você precisa chamar sua ‘namoradinha’ de safada mais vezes, quando estiver entrando e saindo dela. Parece que ela ainda não se acostumou. Posso dar umas aulas, se você quiser.” Willem solta a provocação com a naturalidade de quem não teme limites.
“Por que você está fazendo isso comigo?” — grito, exasperada, as lágrimas surgindo nos olhos. Olho para ele. Por um segundo, noto que meu desespero o atinge; depois, num sopro, ele recupera a frieza sádica de sempre. Talvez eu devesse escolher a primeira opção: sair correndo e desaparecer.
“Namoradinha é apelido de mulherzinha de quinta que anda com você. Não vou permitir que ofenda ela na minha frente. Respeita-a!” — Sam explode, nervoso. É bom ter alguém assim ao meu lado, mas não quero que se machuque por minha causa; desejo corresponder o que ele sente por mim.
“E se eu não quiser?” — Willem não desiste.
“Eu juro, pela minha mãe! Vou acabar com essa sua cara de valentão.” — Sam, feroz. Nunca o vi assim; ele que odeia confusão agora se põe em pé para me defender.
“Vai se ferrar. Tô pouco me fodendo pras suas ameaças. Não tenho medo de você.” — Willem esbraveja.
“Pois deveria.” — Sam rebate, tenso.
“Que se dane você e as suas ameaças.” Willem responde, e a voz de Cynthia sobe num grito que corta meus ouvidos: “Willem, para com isso, por favor!”
“Nem vem com essa, Cynthia. Foda-se esse riquinho de merda — foda-se todos vocês.” — ele olha, com desprezo, para as roupas caras que Sam veste; ironia que me irrita: por que presto atenção nessas coisas agora? Não deveria.
“Aqui ninguém precisa acabar com ninguém. Que puta falta de juízo vocês têm na cabeça, caralho!” — Eric tenta pôr fim à confusão, segurando Sam com firmeza. Olha quem fala de juízo: o mesmo que organiza festas com gente arruinada na casa dos pais enquanto estes viajam.
“Vamos pra casa, Willem.” — Cynthia implora, num tom baixo, segurando o braço esquerdo dele.
“Já disse que não, caralho!” — ele reage, afastando o braço com força. Meu peito dói; tudo parecia bem antes desse mal-educado aparecer.
“Eu falei pra gente ir.” — ela exige outra vez. “E eu respondi que não! Você é surda?” Os olhos dela cruzam com os de Sam. Em qualquer outra situação eu me assustaria por vê-la suplicar assim, mas agora não sei mais de nada.
“Só depois de quebrar a cara desse ‘mauricinho’.” — Willem levanta a voz, sorrindo com desprezo para Sam. Merda.
Sam investe — “Agora eu te mato.” — corre em direção a Willem, pronto pra soco. Eric o contém, prendendo os braços atrás das costas; naquela hora, toda a lanchonete nos observa. Sinto um alívio momentâneo por Eric ter evitado o pior. Não quero Sam machucado por minha causa, nem quero vê-lo machucando ninguém.
“Chega, caramba! Querem ser expulsos ou o quê?” — Eric berra, mantendo Sam imóvel. Eu não posso acreditar no que vejo: Eric, intervindo, firme — um raro momento sensato.
“Na boa, cara, não tô defendendo ninguém, mas deveria se comportar. É seu primeiro dia. Quer ser expulso?” — ele pergunta a Willem, numa tentativa de racionalizar. Willem responde com cara fechada, mostrando que está pouco se lixando para as consequências.
“Parabéns! Você foi anunciado pra ir pra puta que pariu.” — o tom de voz dele é áspero.
“Chega, Willem!” — Cynthia grita pela milésima vez, mas ele parece se divertir com aquilo.
Quando Eric solta os braços de Sam, os punhos dele estão duros. Ele está com raiva. Muita raiva.
“Meu Deus, isso é demais pra mim...” — digo, tomada pelo desespero. As lágrimas descem sem que eu perceba. Por que isso está acontecendo comigo? Que mal eu fiz a esse garoto?
Tento correr, mas é tarde demais — Cynthia segura meus braços.
“Calma, Wanessa! Você não precisa sair correndo desse jeito.”
As lágrimas escorrem pelo meu rosto, e faço um gesto negativo com a cabeça. Não acredito que ela está tentando defender o primo. Mesmo sabendo o que ele acabou de fazer comigo, em público. Olho pra Cynthia, completamente decepcionada.
“Me deixa, Cynthia, por favor. Eu preciso ficar sozinha. Tô muito puta da vida! E, por mais que você seja minha melhor amiga, eu não tô a fim de papo. Nem com você.”
“Vai sair assim? Sem responder a minha pergunta?” — o garoto diabólico volta a provocar.
Como alguém pode ser tão frio? Tão sem empatia? Tão vazio?
“Vou.” — respondo raivosa, as lágrimas ainda escorrendo.
Ele dá uma bufada.
“Covarde.” — o malcriado solta, com aquele olhar de desprezo.
Não dá mais. Ele não quer facilitar, e eu não sou de ferro.
Se ele me joga sete pedras, eu jogo quatorze.
“Vai pro diabo! Você tá precisando de um coração, porque o que tem aí dentro provavelmente é uma pedra!” — grito, alto, sem me importar com o fato de estar numa universidade. Tô cansada dele.
Minha voz treme, minha postura vacila. Engulo seco antes de dizer o que nunca pensei que diria — mas preciso dizer:
“Quer saber? Vai pra puta que pariu!”
O silêncio pesa.
Não acredito que esse palavrão saiu da minha boca.
Eric e Sam ficam de boca aberta, me olhando. Aposto que estão se perguntando: “como ela conseguiu dizer isso?”
Consigo ouvir Cynthia murmurar baixinho:
“Merda...”
“Não, gata.” — ele diz, e eu já imagino o pior. Ele vai me humilhar. Eu sei.
“Não posso simplesmente ir pra puta que pariu e você ficar de boa.”
Não faz isso... por favor, implora meu subconsciente.
“Você é uma vaca que tenta fingir pra todo mundo que é uma garota ingênua. Mas é mais fedida que uma porra de vacas que andam por aí.”
Ele disse.
E eu não consigo pensar em nada. Nenhuma palavra.
Quero sumir. Sumir pra bem longe.
Longe dele, longe de todos.
Por um instante, queria não ter nascido, só pra não sentir essa vergonha. Essa humilhação.
Hoje é o pior dia da minha vida.
Sam se move. Ele vai pra cima de Willem — dessa vez, ninguém vai conseguir segurá-lo.
O desespero me toma.
“Sam!” — grito, minha voz mais alta do que devia.
Ele me olha, confuso.
“Para, por favor!” — peço, as lágrimas já me cegando.
Antes que ele diga qualquer coisa, saio correndo.
Corro em direção à biblioteca, deixando Cynthia e todos os outros pra trás.
Já que eu era o motivo da briga, agora que estou indo embora, não há mais motivo pra briga. Acho.
“Wanessa!” — ouço Sam gritar, mas já é tarde.
Quando entro na biblioteca, percebo que está quase vazia.
Sinto um alívio — preciso de silêncio.
Abro meu livro de Anatomia I, tentando estudar um pouco pra não pensar em bobagens.
Mas segundos depois, meus pensamentos me traem.
Volto a ouvir a voz dele dentro da minha cabeça, cruel, debochada:
“Qual é, não se faz de santa. Não me diga que quando você transa com seu namorado, ele não te chama de piranha, safada e gostosa?”
Não acredito que ele disse isso pra mim.
Até agora não caiu a ficha.
Fecho o livro de Anatomia I.
Abro o outro — o novo, aquele que o Sam me deu.
E tento me esconder dentro dele.
10
“Belo Desastre.” Quando vejo o título, sinto uma ansiedade boa: sei que isso vai me tirar da escuridão, desse buraco em que estou agora.
Era como se tudo naquele lugar gritasse que ali não era o meu lugar — as escadas desgastadas, o alvoroço dos clientes briguentos, o ar pesado, mistura de suor, sangue e mofo. As vozes viravam borrões; as pessoas gritavam números e nomes, empurrando-se para trocar notas e gesticular no meio daquele barulho.
Passei espremida pela multidão, logo atrás da minha melhor amiga.
— Deixe o dinheiro na carteira, Abby! — América gritou.
O celular vibra no meu bolso: “Cynthia.” O nome dela aparece na barra de estado e, logo abaixo, uma mensagem: Onde você tá? Decido não responder. Continuo lendo aquela história que me prende. Quando percebo, já são quatro e meia da tarde — é melhor ir pra casa antes que a minha mãe comece a se preocupar. Afasto-me depressa do campus, tentando evitar encontrar qualquer um dos meus amigos. Ainda ouço a voz dele na cabeça:
“Não posso simplesmente ir pra puta que pariu...”
“Você é uma vaca que tenta fingir pra todo mundo que é uma garota ingênua. Você é mais fedida que uma porra de vacas que andam por aí.”
Principalmente com aquele garoto abusado. Quem ele pensa que é pra tratar as pessoas como nada? Pego o ônibus e, enfim, chego em casa. Ao abrir a porta, sou recebida pelo cheiro forte de sempre. Não resisto: corro para a cozinha. Estou morrendo de fome — não comi nada o dia inteiro.
O celular vibra de novo: “Como você tá?” — Sam manda mensagem. Decido responder; ele me defendeu hoje, e eu agradeço por isso. Sam é um amor. “Estou bem.” envio.
— “Olá, querida” — cumprimenta minha mãe, toda empolgada com as panelas.
“Oi, mãe.” Tento fingir que estou bem. — “Por favor, pode me servir alguma coisa? Estou morrendo de fome.”Sorrio, me esforçando. Ela me olha com um olhar de pena; aposto que tenta adivinhar o tamanho do meu cansaço.
“Claro, querida.” Minha mãe me serve um macarrão com queijo delicioso — daqueles que lembram Todo Mundo Odeia o Chris. Ela pegou a receita na internet. O macarrão com queijo é um clássico americano, servido até no Dia de Ação de Graças; não sei se a versão da Rochelle era tão gostosa, mas duvido que supere o que a senhora Rich prepara.
“Está de parabéns! Você arrasou no macarrão, senhorita Rich. Tá ficando uma ótima cozinheira de comida americana.”Elogio enquanto dou a primeira garfada. Minha mãe sorri, satisfeita. Ultimamente ela anda testando receitas americanas: já fez jambalaya, twinkies e até hot dog.
“Você precisa me ensinar um dia desses.”— Aponto para o prato, antes de dar a oitava garfada.
“Talvez um dia.” Ela fica pensativa, pega um pano húmido, passa sabão e limpa o balcão; depois pega a esfregona para o chão.
“Você não parece muito contente em me ensinar.”
Não sei exatamente se disse isso ou não. Pela cara dela, duvido que ela esteja feliz em ensinar a filha a cozinhar. Assim que termino de comer, lavo o prato e coloco-o numa bacia com pratos limpos.
“Não é isso.” — ela diz, assim que termina de passar a esfregona pelo chão. Fico de costas para a pia, cruzando os braços.
“O que é então?” — pergunto.
“Só não quero que se preocupe com essas coisas. Você já tem muito o que fazer na universidade. Cursar Medicina não é fácil e você precisa de mais concentração nos estudos do que na cozinha... por enquanto.”
Ela tem razão em parte: Medicina exige dedicação e horas de estudo. Preciso mesmo dedicar mais tempo aos livros do que à panela, por enquanto.
“Como foi o seu dia hoje?” — ela pergunta depois de bocejar um milhão de vezes. Gostaria de desabafar sobre o que aconteceu na universidade, mas algo em mim avisa que não é uma boa ideia. Consigo imaginar minha mãe saindo cedo amanhã pra procurar o primo da Cynthia, querendo tirar satisfações; e eu com a fama de garota mimada que pede à mãe pra resolver tudo. Nem pensar — não vou contar nada.
“Foi muito aleatório...” — digo.
“E por que aleatório?” — minha mãe pergunta.
“Os seus professores não têm um plano de aula?”
“Tô falando no geral, não só da universidade. Nunca sabemos exatamente como será o dia até que ele aconteça. Por mais que a gente planeje, nunca sai cem por cento como a gente quer... Isso torna tudo aleatório.” — explico.
“Você tem razão.” — ela concorda e sorri. Claro que tenho.
“Vou descansar um pouco. Se precisar de mim, sabe onde é meu quarto. Até mais tarde.” — minha mãe avisa. Faço um gesto afirmativo com a cabeça. Ela me dá um beijo na testa e sai da cozinha. Poucos minutos depois, o celular vibra.
— “Oi?” — recebo uma mensagem de número estranho. Não vou responder, penso.
“Não hoje.” — digo a mim mesma.
A notificação insiste: “Responde. Preciso falar com você, por favor. — Willem.”
Que autoridade esse sujeito acha que tem pra me mandar mensagem? Aposto que a Cynthia deu meu número pra ele — ela devia ter me consultado. Fico roendo as unhas da mão direita. Só de ver a mensagem, perco o apetite. Cara de pau demais.
Saio logo, antes que minha mãe perceba. Preciso acabar com essa palhaçada. Como ele chegou até aqui? Ainda nem conhece a cidade — ou conhece? Não quero saber. Só quero ele longe.
Na porta de casa ele já está — e tem a ousadia de me cumprimentar: “Oi.” Que cara de pau.
“Oi.” — respondo.
“O que você quer?” — pergunto, olhando feio.
Ele responde: “Conversar. Podemos?”
O sotaque sul-africano não é pesado; sua voz é alta. Os olhos são azuis, os cabelos escuros e ondulados; a pele clara; os lábios entre rosa e vermelho; dentes muito brancos e alinhados — parece ator de novela. Veste moletom preto, calça jeans preta e ténis pretos. “Claro que não.” respondo seco. Óbvio que não: ele me humilhou na frente dos meus amigos e agora aparece na porta da minha casa, à noite, querendo papo? Patético e doentio. Ele bufa, balança a cabeça, incrédulo.
“Por que não?” — insiste.
“Porque não quero falar com você. Não depois do que você fez.” — digo, querendo me transformar numa super-heroína só pra apagar a expressão sínica do rosto dele.
“E o que eu fiz?” — ele pergunta. Vou matar ele.
“Bom, você me humilhou na frente de todo mundo — e não foi pouca coisa.” — começo.
“Eu só...” — ele tenta dizer algo, mas eu o interrompo.
“Para de ser sínico! Eu quero você longe de mim. Além do mais, nem sei o que você está fazendo na minha casa a essa hora. Não cansa de me atormentar?” murmuro.
“Eu não quero atormentar você.” responde Willem. Falso.
“Então o que está fazendo aqui? Veio dar um boa-noite à fedida?” pergunto com ironia, enquanto cruzo os braços.
“Eu…” ele tenta explicar.
“Você me atormenta! Em apenas um dia, conseguiu ganhar o óscar de ser a pessoa mais odiada por mim. Eu nunca senti tanta raiva de alguém como estou sentindo de você.” digo, sem deixar ele terminar o que queria dizer.
“Eu sei, você tem todo direito de me odiar.” Claro que tenho. Seus olhos se viram para o chão. Ele nem consegue olhar para mim.
“Como você chegou até aqui? Porque eu não te dei meu endereço.” pergunto, mesmo sabendo a resposta. Ou pelo menos acho que sei.
“Cynthia me passou. Ela pediu para eu me desculpar com você.”
Agora ele pede desculpas? Pensei que havia dito que não pede desculpas quando me empurrou hoje. Ele disse isso.
“Vamos ver. Você está aqui só porque ela implorou para você se desculpar, certo? Isso não significa que está realmente arrependido.”
Ele me olha, mas não diz nada.
“Acho melhor ir embora daqui.”
Que garoto sem noção! Ele não tem mais nada pra fazer em vez de brincar com as pessoas?
“Não é isso! Eu vim porque estou arrependido pelo que fiz com você, Wass. Me desculpe, tá?”
“Wanessa. É assim que os seres humanos me chamam.” retifico sarcasticamente.
“Ah tá. Nessa. Me desculpe, por favor.” ele implora. Sua voz sai suave. Parece totalmente diferente do grosso de mer… do grosso que conheci hoje.
“Não perdoo nada. E pra você eu sou Wanessa.” deixo claro.
“Eu só quero ser seu amigo.”
De jeito nenhum vou ser amiga dele. Nem pensar.
“Amigo? Amigos não chamam suas amigas de piranha. Não do jeito que você disse. Você é uma pessoa sádica. Não posso ser amiga de alguém como você.” digo, franzindo a testa.
“Me desculpe, Nessa. Eu não quis ser um idiota com você.”
Mas foi. Qual é a dele? Ele não percebe que eu não o quero perto de mim? E ainda por cima continua me chamando de Nessa? Dou uma bufada.
“A gente só precisa tentar, pela Cynthia. Vocês são amigas e ela é minha prima. Então precisamos fazer um esforço pra conviver juntos. Ela está mal com tudo isso e a culpa é minha... Por favor?”
Sua expressão é desesperadora, e com essa cara bonita que ele tem é difícil dizer não. Cara bonita que nada!
“Nem pensar! Me deixa em paz, garoto.”
Quero distância dele. Tenho certeza disso.
“Eu te deixo em paz se você aceitar meu pedido de desculpa, ‘Nessa’.”
Seu tom de voz é calmo. É mesmo?
“Não me chame assim!” grito.
“Desculpa, Wanessa.”
Seu tom de voz é ainda mais calmo que antes. Deixa eu ver. O abusadinho agora pede desculpas!
“Por que você não me deixa em paz? Eu te conheci hoje e parece que você chegou pra infernizar a minha vida, caramba! O que quer de mim? Primeiro me ofende e agora está na frente da minha casa me pedindo desculpas. Qual é o seu jogo? Você é assim com todo mundo ou está sendo apenas comigo?”
Me exalto. Não sei qual é a dele, mas não quero esse tipo perto de mim.
“Calma! Eu sei que você tem todo direito de ficar brava comigo, mas eu estou arrependido. De verdade.”
Ele parece tão diferente do idiota que conheci hoje. Pelos vistos, tem duas personalidades, e essa é a melhor versão dele.
“Fala de uma vez o que você quer. Estou com pressa.” murmuro, revirando os olhos num tom baixo.
Suas desculpas estão começando a me deter.
“Você.”
Ele responde calmamente, olhando fixamente nos meus olhos e, por um instante, fico sem ter o que dizer.
Meu Deus! Ele é um doente mental.
“Bom, eu acho que essa conversa não tem nenhum cabimento. Melhor eu entrar.”
Não sei por quê, mas aquela palavra que tem apenas quatro letrinhas… apenas quatro… mexeu comigo. É esquisito dizer isso e até paranóico, mas essa é a verdade. Você.
Para com isso! Você nem conhece ele, sua doida — meu subconsciente me lembra.
“Espera!” ele implora, no momento em que me viro pra ir embora.
“O que é?” me viro, olhando pra ele e gritando irritadamente.
“Não vai, por favor. Eu não quis dizer isso. Apenas estou tentando pedir desculpas. Pelas coisas que fiz você passar... que a gente tentasse ser amigos.”
Não tinha notado, sua voz é linda. Qual é o meu problema?
“Não vai dar.” respondo com frieza. Não posso ser amiga de alguém antipático.
“Por favor, Wanessa.”
Ele implora, se aproximando mais de mim. Acabo cedendo. Estou de saco cheio dele. Se eu não o perdoar, ele não vai me deixar em paz.
“Está certo. Mas saiba que faço isso pela Cynthia.” lanço um sorriso forçado.
“E se voltar a me chamar de Nessa, mudo de ideia. Entendeu? Somente meus amigos e pessoas próximas têm o direito de me chamar assim.”
Pra falar a verdade, ninguém nunca me chamou de Nessa antes.
Ele faz meio que sim com a cabeça e meio que não. Sei que entendeu o que eu quis dizer, então não tenho com o que me preocupar.
“Posso convidar você pra sair?”
Ele coça a nuca. Parece estar tímido. Sabia!
“Não. Não pode.”
O que está pensando? Que só porque aceitei tentar ser amiga dele, vou aceitar sair com ele?
“Por favor, Nessa — quer dizer, Wanessa. Prometemos tentar, pela Cynthia, lembra?”
Por que ele não para de pedir por favor? Ele deveria dar o fora daqui, isso sim.
Willem olha fixamente em meus olhos, cruzando as duas mãos como se estivesse rezando.
“Você disse que se eu te perdoasse, iria me deixar em paz, lembra? Pois é, eu perdoei. Parece que você não está cumprindo com o trato.”
Trato é trato.
“Eu disse? Não me lembro.”
Ele finge. Seu sorriso é bem falso, apesar de seus dentes e lábios serem perfeitos. Se desse pra ganhar dinheiro sendo cínico, ele seria o mais rico do planeta.
“Por favor, Wanessa.” diz ele mais uma vez, e eu o repreendo.
“Não! Prometemos tentar ser amigos. Não uma espécie de amantes… você deveria agradecer por eu te perdoar...”
Deixo claro como a água.
Ele chega mais perto, olha pra mim segurando minhas duas mãos, dizendo bem baixinho:
“Eu só quero mostrar que não sou essa pessoa horrível que você conheceu hoje na universidade. Por favor!”
Claro que é, e chega de dizer por favor. Isso já está ficando irritante.
Embora, com esse olhar tão doce e meigo, eu aceite qualquer coisa. Aceito nada.
“Está bem, está bem!” grito, muito irritada com a sua insistência.
“Mas não é um encontro. E não me faça me arrepender disso.” aviso, tentando manter a postura de durona.
Ele lança um sorriso malicioso.
“Pode deixar.”
Espero não me arrepender dessa besteira.
“Agora preciso entrar, antes que a minha mãe perceba a minha ausência.”
Me afasto. Em seguida ele grita:
“Nos vemos amanhã. Pego você às três e meia da tarde.”
Ele avisa. Quase me esqueço que amanhã é primeiro de maio e é feriado. Ele se afasta e entra no carro.
Nossa! Que máquina!
Fico de boquiaberta, quando o vejo a entrar no carro que provavelmente é seu. Acho.
O carro é preto, da marca Jeep Wrangler. Segundos depois, me dou conta que o carro é igualzinho ao do namorado da Lara Jean Covey, Peter Kavinsky, de “Para todos os garotos que já amei.”
Até que ele é bem parecido com o Peter, apesar de parecer ser um garoto briguento e com personalidade duvidosa. Muito duvidosa mesmo! O Peter jamais trataria a Lara do jeito que ele me tratou — de jeito nenhum. Ele é educado demais para isso.
“Quem é aquele garoto?”
Escuto a voz da minha mãe me perguntando segundos depois que abro a porta.
Ai meu Deus! Ela me viu, e agora? O que respondo? Me pergunto enquanto fecho a porta. Meu coração está batendo mais rápido que o normal.
“Um amigo.”
Respondo da maneira mais tranquila possível, e meu coração acelera as batidas.
“Amigo? A essa hora?”
Já vai começar com os gritos.
“Olha aqui, menina, você pode até ser maior de idade e tudo. Mas enquanto estiver morando sob meu teto, comendo a comida que eu compro, sou eu quem vou ditar as regras — mesmo que seja sobre seus amigos. Se eu não gostar, eu vou falar. E não quero mais ver esse garoto aqui.”
Pensei que havia deixado claro que não queria que ela se metesse nas minhas amizades.
Amizades femininas, não masculinas, minha mente me lembra.
Minha mãe está gritando demais, que não consigo nem ouvir direito. Ela está um dragão.
“…Você me entendeu?”
“Sim… mãe, eu… peço desculpas por tudo isso.”
Gaguejo e me perco nas minhas próprias palavras. Por que estou pedindo desculpas mesmo?
Ela dá um suspiro de alívio.
“Tudo bem. Já passou.”
Faço que sim com a cabeça.
“Preciso dormir. Amanhã é Dia dos Trabalhadores. Vou festejar com colegas de trabalho e sairei às seis da manhã para ir à praça. Você tem algum compromisso para o dia de amanhã?”
Faço que sim com a cabeça mais uma vez. Ela nem imagina que vou sair com o rapaz que ela acabou de dizer que não quer mais ver. Se souber, vai ter um treco.
Minha mãe me dá um beijo de boa noite na testa.
“Boa noite, filha. Não se esqueça de voltar cedo amanhã. Quero você aqui às oito e meia da tarde. Entendido?”
Ela avisa.
“Que obsessão!”
Resmungo bem baixo, para que ela não me ouça.
“O que foi que você disse?”
Ela pergunta.
Merda.
“Que você não precisa se preocupar. Chegarei cedo.”
Minto sorrindo, embora ela não tenha acreditado muito.
De seguida, seguimos cada uma para seu quarto.
11
Me levanto da cama e, quando vejo o relógio, já são dez horas da manhã. Decidi acordar tarde, porque sabia que é feriado. Pelo silêncio, parece que minha mãe já deve ter saído para festejar o Dia dos Trabalhadores e não quis me acordar. Percebo que tenho apenas cinco horas para me preparar antes que Willem chegue para me pegar.
Não sei por que, mas sinto uma necessidade enorme de ficar bonita para que ele me veja. Entro no banheiro, dou um banho bem demorado e, quando termino, percebo que levei três horas no banho. Me dirijo à cozinha de toalha, esquento uma comidinha para comer alguma coisa. Quando chego no quarto, decido colocar meu vestido azul claro de alça. Ele é muito sexy e mostra um pouco da parte superior dos meus seios. O que há comigo? Não é um encontro, não posso vestir uma roupa sexy para me encontrar com aquele extraterrestre. Além do mais, por que eu vestiria uma roupa sexy? Eu nem gosto dessas coisas! Preciso parar com esses pensamentos. Isso mesmo. Estou tentando ser amiga dele somente pela Cynthia. Pela Cynthia, minha mente me lembra.
Termino de organizar meus cachos para ficarem bem definidos; por fim, acabo vestindo calça jeans preta, blusa de mangas longas de cor branca e All Star branca. Passo um perfume cheiroso da Inuka de que tanto gosto. Tenho que estar simples. Não é um encontro. Pego minha bolsa e, enfim, pronta! Cynthia disse que sua mãe é meio durona, então preferi não buzinar, vem logo. Saio depressa para fora.
Nossa, como ele é lindo! Seus lábios, rosa com mistura de vermelho, são perfeitos, seu cabelo está brilhando. Ele está vestindo uma calça jeans azul-escuro, uma camisa branca bem carregada e sapatilhas brancas All Star.
“Não me olha assim.” Digo, quando chego perto do carro dele, desaprovando aquele olhar malicioso. Ele sorri.
“Você está maravilhosa.” Me elogia, enquanto abre a porta do passageiro do seu carro para eu me sentar. Não sabia que ele sabia ser cavaleiro quando quer.
“Obrigada.” Sorrio ironicamente, assim que ele se posiciona no seu lugar de motorista.
“Você calçou tênis igualzinho aos meus.” Olho para sua All Star branca enquanto ele liga o carro.
“Quer que eu volte para trocar? Ou posso ficar de meias, se você quiser...” Ele ironiza. Tiro a língua fora. Por que estou tirando a língua fora para ele? Já deveria saber que nós não somos amigos. Tentar não é ser.
“Eu queria essa língua bem perto da minha boca.” Ele diz, num tom baixo, e, por um instante, engulo em seco, mas não comento nada sobre isso, mudando rapidamente de assunto.
“Espero que Cynthia não saiba que a gente está saindo hoje… bom, tentando ser amigos. Ou sabe?” Espero que ele não tenha aberto a boca. Não quero que ela pense mal de mim. Aliás! Nem eu sei por que aceitei sair com esse sujeito. Mal o conheço!
“Não se preocupe. Eu jamais faria isso sem te consultar.” Até parece! Para quem já me humilhou na frente dos meus amigos sem me conhecer, isso não seria grande coisa.
“Cynthia fala muito de você. Se eu sei muitas coisas sobre você… quis dizer algumas, é porque ela não para de falar de você. A Cynthia te ama muito e vocês precisam se entender.” Ele leva suas mãos para os cabelos. Eu também amo ela demais.
“Eu sei. Amanhã resolvo tudo isso.” Na verdade, eu nem deveria me chatear com ela. Cynthia não tem culpa de ter um primo mal-educado.
Ele me olha sorrindo, e eu retribuo. Não acredito que estou aqui! Dentro do carro da pessoa que mais odeio nesse mundo, brincando de passear e retribuindo um sorriso. Eu não odeio ele. Na verdade, não odeio ninguém. Só estou magoada pelo jeito que ele me tratou ontem na universidade. Nem consigo lembrar das coisas horríveis que tive que ouvir, saindo da boca dele, mesmo sem ter feito nada. Como alguém pode ser assim? Ter gosto em machucar alguém? Por mais que seja com palavras, não importa. Na vida, há coisas que doem mais ouvindo do que levando uma bofetada.
“Prazer, eu sou Heathcliff.” Olho para ele revirando os olhos.
“Claro! E eu sou a Elizabeth Bennet.” Ele olha para mim, de seguida dá uma bufada acompanhada de meio sorriso.
“Por quê?” Ele pergunta.
“Você não seria Catherine?” Nunca me imaginei sendo ela. Não casaria com alguém que não amo por questões financeiras. Ela é amável, mas também sensível, assim como eu, apesar de ser uma pessoa explosiva, repleta de delírio, o que não tem nada a ver comigo.
“Eu acho que me pareço mais com a Julieta, na verdade.” Digo. Nunca me apaixonei por nenhum homem, mas se o amor é lindo exatamente do jeito que eu imagino que seja, tenho certeza que morreria por alguém que amo, assim como a Julieta morreu por Romeu e ele por ela. Amor deles era lindo. Eu e Sam sabemos bem disso.
“Você morreria por alguém que ama?” Ele pergunta, como se fosse uma coisa impossível.
“Parece que alguém aqui lê livros de romance. É bom saber que não sou única.” Não imaginei que um cara tão folgado como ele teria tempo para ler romance.
“Quem disse que eu leio livros de romance?” Não estou dizendo?
Ele faz uma expressão de horror com o rosto enquanto dirige.
“Eu disse.” Digo.
“Não acredito nessas bobagens.” Bobagens?
“Eu não leio livros, muito menos de romance, e, se sei esses nomes, é porque ouço por aí. Nada daquilo é real, então para que perder tempo lendo? Mesmo se a história for baseada em fatos reais… nunca é do jeito que aparece escrito nos livros. Você sabe, todo mundo sabe disso.” Logo que ouço essas palavras, consigo me lembrar de mim. Eu pensava do mesmo jeito que ele. Exatamente igual.
“Bom, esse é o seu ponto de vista e eu respeito isso.” Não posso contrariar o seu ponto de vista de ver as coisas. Sei bem como é isso. Ficaríamos horas discutindo, e cada um iria fazer de tudo para defender seu ponto.
Ele faz um gesto de sim, enquanto seus olhos estão fixos na estrada. Quero tentar acabar com essa conversa o mais rápido possível. Pensamos totalmente diferente sobre romance, sobre livros. O fato de não ser real, muitas vezes, não significa que o romance é uma bobagem. Claro que muitas vezes nada daquilo tem sido real, mas é exatamente por não ser real que tudo se torna ainda mais real. Não fisicamente, apenas com as nossas imaginações.
As coisas que as pessoas sentem ao ler um livro, um bom livro, são inexplicáveis. Nos dá a oportunidade de viajar no mundo de uma história que não existe. Quando a gente lê, quando a gente lê de verdade, acabamos por nos conectar à história como se fôssemos um dos personagens do enredo; conseguimos sentir parte de tudo, cada lugar, detalhes. Na verdade, fazemos parte desse mundo que é uma ficção, algo irreal. Do mesmo jeito que os escritores conseguem imaginar coisas que nunca viram, criar histórias que na realidade nunca aconteceram, nós também podemos sentir coisas que na verdade não existem. Sim, nós podemos estar numa história sem estar lá necessariamente. Tudo aquilo não é real, nós é que tornamos real, e tudo isso acaba se tornando mais real que a própria realidade.
“Wanessa Ellen Rich.” Me apresento, querendo mudar totalmente de assunto. Ele sorri, e, por um instante, consigo ver sua covinha na bochecha direita, porque na esquerda não encontro nenhuma.
“Seu nome é igual ao de uma amiga minha. Embora ela não goste que eu a chame de Nessa. Minha amiga é muito mais bonita que você… Sabia?” Ele brinca. Que sem noção. Até que ele não é tão estúpido como achei que fosse.
“Nos conhecemos da pior forma, que mal conseguimos nos apresentar.” Ele diz.
“Pois é.” Concordo, balançando a cabeça enquanto mordo meu lábio inferior do lado esquerdo.
“Willem Steven Parker.” Ele se apresenta. Parker, legal.
Enquanto continuamos com a viagem, ele liga uma música no carro; rapidamente percebo que o som é familiar: Just Say You Won’t Let Go, James Arthur. Não é possível!
“Eu amo essa música!” Não imaginei que ele gostasse desse tipo de música, principalmente dessa música! Não acredito que seja coincidência.
“Você lembra que, há pouco tempo, eu disse que a Cynthia fala muito de você?” Ele pergunta com um sorriso malicioso. Bufo, balançando a cabeça de um lado para outro.
“Seu idiota.” Digo, e lhe dou uma cotovelada de leve.
Ele se diverte com isso. Espero que ele não volte a ser um grosso comigo.
“Seu superprotetor sabe que a gente está saindo hoje?” Do que ele está falando?
“Superprotetor?” Pergunto.
“O seu namorado.” Ele responde, revirando os olhos e sorrindo maliciosamente. Namorado! Por que ele acha que tenho um namorado? Será que a Cynthia disse que eu tenho namorado? Como ela pode inventar isso?
“Não que isso seja da sua conta, mas… eu não tenho um namorado.” Respondo, com os olhos revirados, enquanto ele dirige. Seu rosto demonstra estar surpreso.
“Sam não é seu namorado?” Ele pergunta, sorrindo maldosamente.
“Claro que não. Foi a Cynthia quem inventou isso?” Ele para numa calçada e, em seguida, olha para mim.
“Não! Claro que não. Apenas pensei que vocês fossem…” Seu tom de voz é calmo.
“Não somos nada. Além de bons amigos.” Esclareço. Por que ele pensa que eu e Sam namoramos? Será que todo mundo pensa isso? Não gosto que as pessoas pensem algo errado sobre mim. Ele liga o carro para que possamos continuar com a viagem. Ainda não chegamos!
“Está bem, princesa.” Willem diz, enquanto dirige.
Ele acabou de me chamar de princesa? Finjo que não ouvi o que ele acabou de dizer.
“Bom, pra onde está me levando?” Pergunto, mudando completamente de assunto. Espero que não esteja pensando em vender minha alma em um leilão para sul-africanos. Não confio nele.
“Tenta não ser curiosa demais.” Ele responde.
“Você nem conhece direito essa cidade! Não se esqueça que é apenas seu segundo dia aqui.” Digo, e ele dá uma tossida ridícula e acaba se engasgando.
“E daí?” O olho e não digo nada.
“Eu conheço o país inteiro. Já estive aqui, pelo menos, umas cinco vezes.” Ele diz, num tom ufanista. Pelos vistos, ele conhece melhor o país do que eu, que vivi aqui a minha vida inteira!
Enfim, chegamos. Ele abre a porta do passageiro para eu me retirar do veículo. O lugar não é desconhecido, já estive aqui antes, ou pelo menos já passei por aqui.
“Solange Beach Club.” Leio as escritas no portão de entrada, logo que entramos no restaurante. Já passei por aqui várias vezes, embora nunca tenha entrado por falta de dinheiro. Tudo aqui é muito caro, e não tenho dinheiro para frequentar esse tipo de lugar. Pelo visto, Willem está cheio da grana. Claro, suas roupas parecem ser bem caras, e seu perfume deve custar uma fortuna com esse cheiro doce e floral.
O lugar é lindo, tem uma piscina enorme com várias luzes ao redor dela, e logo à frente vejo que tem uma espécie de palco que presumo ser para shows e está localizado bem em frente à piscina. Várias mesas ocupam espaços, as cadeiras são bastante coloridas, e o jardim é verdadeiramente lindo, com várias flores diferentes.
“O que você vai querer?” Ele pergunta, logo que nos acomodamos numa das mesas do restaurante. Sei lá, estou tão feliz por estar aqui que sinto uma vontade enorme de agradecê-lo por me trazer. Mais parece que ele já percebeu, porque não para de olhar para mim, sorrindo.
“O que você decidir para mim está bom.” Respondo com um sorriso educado.
“Tem certeza?” Ele me olha, franzindo a testa.
“Tenho.” Respondo educadamente. Ele concorda. Willem chama o garçom para fazer os pedidos.
“Por que aqui?” Pergunto, assim que o garçom se retira.
“Você não gostou do restaurante?” Ele faz uma pergunta em resposta.
“Posso te levar para um lugar melhor, ou talvez um mais agitado, como, por exemplo, Oceana Club.” Willem parece desesperado em me agradar. É bom saber que ele está se esforçando para ser meu amigo. É um bom começo.
“Sobre o restaurante que mencionei: achei no Google e peguei o endereço. Sei que você iria perguntar ‘como conheço o Oceana Club se tenho apenas quinze minutos nesse país bosta?’” Claro que não iria, não depois dele ter esfregado na minha cara que já esteve no país antes. Ele revira os olhos. Mais para falar a verdade, claro que eu iria perguntar se ele não tivesse me dito sobre ter vindo aqui várias outras vezes. Willem está me conhecendo bem rápido.
“Para!” Sem perceber, uma das minhas mãos já está por cima da mão dele, enquanto grito dizendo para ele parar. Ficamos em silêncio por um instante, até nos darmos conta da situação constrangedora e tirarmos nossas mãos.
“E…” Continuo.
“Não é disso que estou falando… Por que você veio estudar em Moçambique? Especificamente na cidade da Beira. África do Sul é bem melhor que aqui, não acha?” Estava louca para fazer essa pergunta.
“Claro que é. Só não tive outra opção. Meu pai vai abrir uma empresa maior do que a que está por lá daqui a um mês, e ele quer estar por perto. Só não entendo que, com tantos lugares no mundo, ele escolheu exatamente aqui para abrir essa empresa.” Ele explica. Ele detesta esse país, e com toda razão.
“Seu pai deve ter algum motivo.” Tento defender o pai dele, alguém que nem sequer conheço.
“Duvido que tenha! Esse país é uma droga. Todo mundo sabe disso.” Ele esbraveja.
“Eu não sei de nada.” Minto sorrindo. Ele tem razão, mas eu não posso admitir isso. Tenho que defender meu país.
“E você… alguma vez já esteve na África do Sul?” Engulo em seco, tentando processar a resposta o mais rápido possível.
“Sim. Não. Quer dizer, quando minha mãe estava grávida de seis meses, ela foi pra lá com o meu pai. Ele precisava fazer alguns tratamentos… então, acho que isso conta. Ou não?” Não consigo esconder minha cara de vergonha, enquanto minha voz sai ridiculamente igual à do Patinho Donald, da Casa do Mickey Mouse. Mordo o lábio inferior e ele ri, balançando a cabeça negativamente.
“De qual plaga da África do Sul você vem?” Pergunto, assim que ele termina de rir de mim.
“Está querendo saber demais da minha vida…” Ele revira os olhos.
Claro que quero. Digo, não que isso seja tão importante de saber. Apenas acho estranho sair com um garroto cuja única coisa que sei sobre ele é que é o primo da minha melhor amiga.
“Não tente tergiversar, então… responde logo.” Murmuro, sorrindo.
“Johannesburg. A maior cidade da África do Sul, principal…” Ele graçola.
“Para de ser irritante! Não estamos numa aula de Geografia, então me poupe dos detalhes.” Digo, depois de o interromper.
“Só queria tentar explicar algumas coisas… sabe como é, né… Não quero que se perca pela cidade, quando for pela primeira vez. De verdade.” Ele ironiza, num tom brincalhão. Willem deixa claro que o fato de minha mãe ir para a África do Sul quando estava grávida de mim não significa que eu tenha ido. Ele diz que eu fui com ela, mas que ela foi sozinha para lá, e a gente ri da sua explicação patética, mas que faz certo sentido.
“Obrigada pelo dia… pela noite. Foi divertido.” Agradeço, assim que ele estaciona em frente à minha casa.
“Você não precisa agradecer. Eu é quem sou grato por você ter aceitado, você sabe… depois de tudo que eu disse pra você ontem…” Dou uma olhada na janela para ver se minha mãe está espreitando. Normalmente, ela sempre faz isso.
“Não se preocupe. Eu não guardo rancor de ninguém.” Digo, com um sorriso, enquanto ele se alegra com a minha resposta.
“Espero que você não volte a ser um idiota, porque eu juro que não vou perdoar.” O aviso.
“Isso não vai acontecer. Prometo.” Quando ele se aproxima, não consigo esconder meu nervosismo.
“Você fica linda dessa calça preta.” Ele se aproxima ainda mais, e por um momento fico sem ter o que falar. Estou sentindo tanto calor que adoraria que alguém jogasse um balde de água por cima de mim.
“Obrigada.” Respondo timidamente.
“Não fica tímida, Wanessa.” Ele diz, e o seu tom de voz me deixa ainda mais nervosa do que já estou.
“Eu… eu não estou tímida, é que…” Gaguejo. A verdade é que não sei o que dizer.
“Você está tímida só porque falei sobre essa calça preta linda?” Ele ri.
“Willem, para, por favor.” Não consigo esconder minha cara de vergonha enquanto abaixo a cabeça. Ninguém nunca falou assim comigo, com tanta segurança. Sempre que alguém tentava, eu mudava de assunto. Mas com ele está sendo totalmente diferente. Por mais que eu queira, não consigo.
“Tá bom, princesa, eu paro.” Ele sorri, e consigo ver mais uma vez sua única covinha na bochecha direita. Ele me chamou de princesa. De novo!
“A gente se vê por aí.” Ele se despede, enquanto coloca as mãos no fundo do bolso. Não sei por quê, mas sinto um vazio no peito com essas palavras. Foi legal passar o dia com ele; nunca havia saído com um rapaz antes. Bom, Sam já tentou várias vezes, embora eu nunca tenha aceitado. Mas Willem conseguiu me convencer em apenas uma noite. Quem é esse garoto? Que no primeiro dia que me conhece me humilha, pede desculpas, me pede para sair com ele e me chama de princesa? E quem sou eu? Já não me reconheço, em apenas um dia, sem sequer o conhecer, aceitei sair com ele mesmo depois de tudo!
“Posso abraçar você?” Ouço sua voz interrompendo meus pensamentos confusos.
“Claro, se você não se importar.” Ele diz, girando sua boca de lado como se estivesse a pensar em algo. Não sei se isso não seria uma boa ideia: dar um abraço em um garoto bem na frente da minha casa, a essa hora da noite...
“Claro que pode.” Respondo, sem me dar conta do que estou dizendo. Então ele se aproxima ainda mais. Consigo sentir o aroma doce e floral do seu perfume. Quando ele me segura pela cintura, fico congelada e ainda mais nervosa, sem conseguir estender os braços para corresponder ao abraço.
“Será que posso sentir um pouco do seu abraço? Desse jeito está meio difícil.” Ele pergunta, apoiando sua cabeça em meu pescoço enquanto me segura pela cintura.
“Claro.” Respondo, insegura do que estou dizendo.
Quando estico os braços para abraçá-lo, ele retira a cabeça do fundo do meu pescoço e me encara.
“Você é linda, Wanessa.” Por que não estou conseguindo dar um fim nisso e mandar ele ir embora? É isso que quero fazer, mas não consigo.
“Eu acho melhor você ir.” Fico séria enquanto digo, ou pelo menos tento.
“Me desculpe, mas eu não poderia ir embora sem dizer isso. E me desculpe pelo que vou fazer…”
“O que você vai fazer?” Pergunto, obviamente sem perceber sobre o que ele está falando.
“Isso.” Ele diz no momento em que me aperta de leve para mais perto de si e me beija. É, ele me beija. Espera aí? Não acredito! Isso está mesmo acontecendo? Eu sempre imaginei meu primeiro beijo em um dos lugares mais lindos do mundo, como, por exemplo, em Paris perto da Torre Eiffel, Capadócia voando de balões, ou talvez em Veneza no passeio de gôndola. Sei que é demais sonhar tão alto assim, porque, na verdade, não tenho dinheiro para ir a esses lugares, mas também nunca imaginei que meu primeiro beijo seria com o primo da minha melhor amiga, alguém que eu mal conheço, e ainda por cima bem na frente da minha casa. O que estou fazendo? Por que não consigo parar?
Me sinto leve enquanto ele me beija. Ele passa a língua dentro da minha boca; não sei como, mas consigo acompanhar seus movimentos lentos perfeitamente, enquanto suas mãos seguram minha cintura. O sabor não é ruim, apesar de ser um pouco estranho, e, ao mesmo tempo, incomparável; gosto do que sinto.
“O que foi isso?” Pergunto, logo que terminamos de nos beijar. Dou alguns passos para trás, como se não estivesse acreditando no que acabou de acontecer. Isso não aconteceu, isso não aconteceu. Meu subconsciente tenta me enganar. Claro que aconteceu. Acorda!
“Me desculpe. Eu sabia que você não iria gostar…” Ele diz. Se sabia, por que fez?
“Por que você fez isso?” Digo num tom sério, sem saber o que estou dizendo, porque na verdade até gostei do beijo. Mas também sei que é errado. Ele fica em silêncio, e isso não me parece um bom sinal.
“Então é isso? Você apenas queria brincar comigo. Não bastavam as coisas horríveis que você disse para mim ontem, agora isso! O que eu fiz para você?” Pergunto, percebendo que estou tentando segurar as lágrimas. Como fui capaz de deixar um sem coração, alguém que conheci há um dia, me dar o meu primeiro beijo? O primeiro beijo da minha vida, caramba! Ele continua permanecendo taciturno.
“Vai em frente! Você já pode sair correndo espalhar para meus amigos sobre hoje, e dizer o quanto fui uma burra e fácil para você.” Grito como uma louca.
“Poraa, Wanessa! Do que você está falando?” Lágrimas não param de escorrer pelo meu rosto. Estou magoada.
“Foi apenas um beijo! Todo mundo se beija o tempo inteiro. Eu não levei você para dar para mim, tá legal?” O quê? Não acredito no que estou ouvindo! Agora entendo por que minha mãe não quer que eu me envolva com ninguém tão cedo. Os garotos só sabem magoar. Eu já deveria saber que isso iria acontecer.
“Quer saber, seu garoto mimado? Que se dane! Que se dane você, o maldito passeio de hoje e tudo que aconteceu desde que te vi ontem.” Grito chorando, enquanto me preparo para ir embora.
O que não acontece: ele vem correndo em minha direção, segurando meu braço e me puxando para mais perto de si. Pela segunda vez, o garoto me beija. De novo. De novo! O quê? Não consigo empurrá-lo para longe de mim. Ele é mais forte do que eu, e me sinto mais experiente no segundo beijo do que no primeiro.
“Você está mais calma agora?” Ele pergunta depois que terminamos o beijo, me segurando bem firme pela cintura, sem me machucar, apenas para se certificar de que eu não saia correndo.
“Por favor, Willem. Me deixa, eu não quero mais ver você.” Meu tom de voz é baixo. Não vale a pena gritar com ele. Afinal, ele é um típico daqueles que faz o que bem entende e não se importa se vai machucar alguém com suas ações ou não. Uma pessoa sem remorso. É isso que ele é.
“Não, princesa. Não zanga comigo.” Essas palavras acabam comigo. Por que me chamar de princesa enquanto acaba de me tratar como uma qualquer?
“Não me chama assim, por favor.” Peço.
“Por que não? Você não gosta que eu te chame de princesa? Ou que te chame de Nessa?” Claro que eu adoro que me chame de princesa, mas jamais vou admitir isso, e também sei que ele é um idiota que me beijou por diversão. Me chamar de princesa é apenas uma diversão para ele.
“Pode me chamar de Nessa.” Respondo. Foi desse jeito que ele me chamou ontem. Ele me solta bem devagar. Talvez eu devesse correr em direção à porta da minha casa, mas, em vez disso, fico e cruzo os braços.
“Ainda está chateada comigo?” Claro que estou. Depois de você me beijar por diversão... Isso não é pouca coisa.
“Eu não beijei você por diversão, Wanessa.”
Não é possível! Estou bem na frente de um sádico que lê pensamentos, ou o quê?
“Pode soar meio estranho para você, mas desde que te vi ontem… sei lá, você mexe comigo.”
“Jura? Você é horrível mentindo. Só falta dizer que se apaixonou por alguém que conheceu ontem.”
“Vai pra casa, Willem.” Digo friamente. Como é possível um garoto que nem me conhece dizer que está sentindo algo por mim? Isso é muito louco.
“Tudo bem. Mas posso ligar para você mais tarde?”
“Tudo bem.” Digo rapidamente. Quero que ele vá logo.
“Não vai me dar nem um beijo de despedida?” Meu coração acelera só de ouvir essas palavras. Claro que não. Não tenho por que te dar um… talvez seja melhor dar para ele ir embora.
Me aproximo e dou um beijo em sua bochecha.
“Vai logo.” Aviso, meio sorrindo.
“Pensei que seria na boca.” Ouço ele murmurando com os dentes cerrados, enquanto nossos corpos se desgrudam. Babaca.
“Você fica linda quando está chateada.” Ele ironiza, mas não tenho clima para suas ironias.
“Tudo bem, estou indo. Te ligo mais tarde. Preciso te perguntar algo ou fazer um pedido, talvez…” O que será que ele quer me perguntar? Um pedido? Qual? Me pergunto, e de repente ouço o barulho da porta do seu Jeep Wrangler se fechando e Willem se vai.
13
Apesar de, no fim, Willem voltar a ser o babaca, foi divertido passar o dia com ele; até cheguei a pensar que poderíamos ser “bons amigos”. Por que ele tem que ser assim? Imagens dele me beijando, enquanto me segurava pela cintura, flutuam em minha mente, e só de imaginar aquela boca gostosa na minha e suas mãos me segurando pela cintura enquanto me beija, sinto meu corpo arrepiar. É uma sensação estranha; nunca havia sentido isso no meu corpo antes.
Enfim, quando chego à porta, tentando tirar as chaves do fundo do bolso das minhas calças, meu celular cai no chão de azulejo da varanda, e fico alarmada ao ver a tela acesa. Minha mãe mandou oito mensagens, e vejo quinze chamadas não atendidas. Quinze! E por que meu celular está no silêncio? Eu não me lembro de tê-lo colocado no silêncio.
“Se prepara, Wanessa, que hoje será anunciada sua sentença de morte.” Digo a mim mesma, quando vejo na tela do celular que são dez horas da noite, e minha mãe deixou claro que eu deveria chegar às oito. Estou morta. Minha mente tenta processar mil maneiras do que vou dizer para ela antes de abrir aquela maldita porta, mas nada vem à minha cabeça.
Quando giro aquela maldita maçaneta, no mesmo momento em que giro as chaves, imagino minha mãe de pé ao lado da mesa de jantar, batendo com o polegar sobre a mesa, como ela sempre faz. Conheço-a o suficiente para saber que é isso que está fazendo. Por outro lado, ela tem razão; nunca cheguei tão tarde. Ela deve estar um furacão de preocupação.
A porta se abre, enquanto imagino o pior, mas logo me dou conta de que minha mãe não está bem ao lado da mesa de jantar, como eu imaginava. Não sei se fico feliz por ela não estar bem na minha frente, gritando de preocupação porque me atrasei, ou se fico triste pelo mesmo motivo.
Quando chego no corredor, tento me aproximar da porta do quarto e fico aliviada por ela estar aberta; não precisarei abri-la vagarosamente. Minha mãe está dormindo que nem uma pedra. Fico aliviada por não ter que ouvir seus gritos, mas também um pouco triste por não vê-la na sala, preocupada à espera da sua única filha. Sua única filha!
Entro no meu quarto, sinto um cansaço horrível; tudo que quero é tomar um bom banho e me deitar. Tiro a roupa do meu corpo e, por fim, a calcinha.
“O que é isso?” Digo a mim mesma, quando vejo minha calcinha molhada. Muito molhada, mais molhada do que o normal. Deixo cair a calcinha pelos meus pés e abro as pernas para entender o que está acontecendo lá embaixo. Quando coloco meu dedo indicador para me certificar do que estava acontecendo, percebo que é um líquido tipo clara de ovo, sem cheiro e transparente. Fluido de excitação!
Me lembro de ter estudado sobre isso no ensino médio. Geralmente acontece dentro da vagina, como parte do ciclo de resposta sexual humana. Mas por que isso está acontecendo comigo, se eu nem sequer estou excitada? O quê?
Não acredito que fiquei excitada por causa dele! Foi só um beijo! Como isso é possível? Eu nem pensei em sexo enquanto o beijava. Claro, como vou pensar em algo que nunca fiz? Pelo visto, não entendo nada dessas coisas de sexo; eu deveria assistir alguns filmes pornô para ter ideia de alguma coisa. Mas o que está acontecendo comigo? De jeito nenhum vou assistir essas coisas nojentas!
Quando entro no quarto depois de ter tomado banho, meu telefone toca. Willem é o nome que aparece na tela. Não atendo. Não sei em que momento gravei o número dele no meu celular, mas não quero pensar nele agora. Preparo a matéria da aula para amanhã, em seguida pego o livro de Romeu e Julieta e releio pela milésima vez, antes de me jogar na cama e cair no sono.
Pego um ônibus às seis da manhã. Minha mãe estava dormindo. Saio às pressas; ainda não estou pronta para encarar seus gritos. No caminho da UCM, Willem manda uma mensagem de bom dia. Fico feliz em saber que ele acordou pensando em mim, mesmo depois de ter sido um grosso comigo.
Tenho que falar com a Cynthia. Lembro-me. Preciso fazer as pazes com ela, acerca da briga de ontem.
“Ontem liguei para você e não quis atender. Tal como imaginei. Sei que está brava comigo, eu não quero me divertir com você, juro. Quero você. Essa não é uma forma educada de te dizer isso ou pedir, mas você não está me dando opções. Estamos namorando. E não vou aceitar um não.”
12
Fico de boquiaberta ao ver a mensagem que Willem acaba de mandar. Como assim, namorando? Não sei o que pensar sobre isso. Sei lá, parece algo sem lógica. Eu não estou namorando com ele de jeito nenhum! Quem ele pensa que é para decidir se estou namorando com ele ou não?
Enfim, chego à universidade. Assim que entro, recebo uma chamada, pensando que é o Willem. Mas percebo que não, assim que olho para a tela do celular: minha mãe. Não atendo. Vou resolver tudo com ela quando chegar em casa. Tenho que encontrar a Cynthia. Decido ligar pra ela.
“Alô?” — digo.
“Oi.” — ela responde, e consigo perceber sua felicidade em ouvir minha voz.
“Bom, Cynthia, eu… a gente precisa conversar…” Minha voz sai meio ridícula ao celular.
“Eu sei.” — ela diz.
“Onde posso te encontrar?” — pergunto.
“Na lanchonete da UCM. E você, onde está?”
Parece que ela está chegando mais cedo que eu ultimamente. Estou feliz em saber disso, mas um pouco triste por perceber que não estou sendo tão pontual como antes. Consigo perceber que tenho me descuidado um pouco com os assuntos relacionados à universidade.
“Perto… Chego aí em alguns minutos.” — digo em resposta e, em seguida, corro para a lanchonete.
Cynthia está sentada mexendo no seu celular.
“Oi, Cynthia.” — a cumprimento assim que me aproximo.
“Wanessa!” — ela parece surpresa em me ver. Cynthia se levanta. Enquanto isso, faço um pedido de abraço, estendendo meus braços pelo ar.
“Eu sinto muito. Me desculpa, não consigo ficar chateada com a minha única e melhor amiga.” — recebo o seu abraço familiar.
“Você não precisa se desculpar. Eu é quem peço desculpas por o Willem ser um babaca. Espero que ele tenha ligado pra você… pra se desculpar.” — ela diz, enquanto acaricia minhas costas.
“Claro que ele ligou. Está tudo bem.” — minto em parte.
“Estou tão feliz que a gente se entendeu. Você nem sabe como senti sua falta.” Lanço um sorriso sincero antes de responder:
“Também estou feliz.” — sorrio.
“Você não vai acreditar! Tenho um montão de coisas para te contar.”
Fico ansiosa. O que será que ela aprontou durante um dia que não nos falamos?
“Você não vai acreditar!” — ela diz pela segunda vez, e minha curiosidade só aumenta.
“O que andou aprontando, garota?” — pergunto com um olhar desconfiado.
“Estou namorando! Tipo, namorando mesmo. Um lance super sério e tudo.”
Fico de boquiaberta. Já tenho quase certeza de quem é o sortudo, só quero confirmar.
“Não acredito… é com quem estou pensando?” — pergunto com um olhar misterioso. E, pelo olhar dela, tenho certeza que é isso.
“Sim, com Eric! Ele me pediu em namoro ontem à tarde…”
Não sei se gosto da ideia de que seja o Eric, mas estou feliz por eles finalmente estarem juntos. Estou feliz por ela… quis dizer.
“Estou tão feliz por você!” — sorrio. Seguro seus braços, como se estivesse a dando coragem. Bom, ela vai precisar, para falar a verdade. Atendendo e considerando que Eric não é uma das melhores opções do universo…
“Obrigada.” — ela morde o lábio inferior.
“Você precisa ir na festa do Eric, esse final de semana.” Ela fica séria. Sua expressão é como se estivesse afirmando que eu vou a essa festa ridícula. Nem pensar!
“O quê? De jeito nenhum! Você sabe o que penso a respeito dessa festa…” — respondo aos berros. Não muito.
“Eu não estou pedindo pra você perder a virgindade com o primeiro cara que estiver lá. Muito menos pra beber até encher a cara.” Até parece que eu vou deixar um bêbado tirar minha virgindade!
“Não vai dar.” — suspiro e digo bem baixo.
“Por favor, não vai acontecer nada. Prometo. É importante pra mim que você esteja lá.” — ela implora.
“Você está pedindo coisas demais ultimamente…” — reviro os olhos. Primeiro ir comprar roupas, depois me obrigar a vestir algo que não queria e agora isso? De todas as coisas que ela me pediu, ir para essa festa é a mais bizarra, com certeza.
“Por favor, Wanessa.” — ela implora mais uma vez.
“Tá certo, Cynthia Catherine Loren. Eu vou.” — ela me surpreende dando um beijo na bochecha. Por que nunca consigo dizer não por muito tempo?
“Vai ser divertido! Você vai ver.” — ela sorri. Claro que não vai. Tenho certeza disso.
“Tá, tá, tá bom!” — murmuro. Não gosto muito dessas festas, mas enfim, não tenho como. Só tenho que esperar pra ver no que vai dar.
“Mudando de assunto… Me conta o que você aprontou no dia de ontem. Não me diga que ficou em casa sozinha lendo seus livrinhos sem graça, porque sua mãe trabalha e acredito que saiu pra festejar… o Dia dos Trabalhadores…”
Me engasgo com a saliva, pensando no que vou responder. Claro, seu primo, que eu odeio, me convidou para sair. Passei quase todo o dia com ele na Solange Beach e, no fim, ele me deu um beijo por diversão! E hoje mandou uma mensagem deixando claro que estamos namorando! Resumidamente… que patético.
“Bom, você sabe que não sou muito de sair… fiquei estudando. E li algum livro de romance também.” Não acredito que estou mentindo para minha melhor amiga. Depois de termos prometido não fazer isso alguns meses atrás. Porque é o que as amigas fazem. Elas falam a verdade.
“Você não tem jeito mesmo.” — Cynthia balança a cabeça, olhando pra mim, sorrindo.
“Nunca duvide disso.” — respondo balançando a cabeça positivamente, e caímos as duas na risada.
A conversa estava muito boa, mas tivemos que interrompê-la para participar da aula de Anatomia I, com a professora Emily. Ela diz que no início não gostava da aula porque parecia ser chata demais, como todas as outras, mas que começou a gostar quando percebeu que as duas tinham várias coisas em comum. Por exemplo, o jeito de se vestirem e arrumarem o cabelo é igual. Na verdade, ela gosta da Emily, mas sinceramente duvido muito que goste da aula.
De repente, minha mente é invadida. Imagens de Willem me beijando possuem meus pensamentos. Não consigo parar de pensar nele e no nosso beijo — no meu primeiro beijo.
“Olá, galera.” — nos cumprimenta Eric na porta da turma assim que terminam as aulas. Às vezes parece que ele não estuda na mesma turma que nós.
“Oi, Eric.” — eu e Sam o cumprimentamos em uníssono, mas Cynthia não cumprimenta. Ela parece tímida. Cynthia, tímida?
Sam me dá um beijo fofo na bochecha. Não me dei conta de em que momento Sam chegou.
“Olá, gata.” — Eric olha para Cynthia e, em seguida, lhe dá um beijo na boca. Eu e Sam ficamos de boquiaberta.
“Uau! Que casal!” — eu e Sam cochichamos.
“Oi.” — Cynthia responde e rapidamente lanço um olhar misterioso.
“O que foi?” — Cynthia me pergunta, fazendo um gesto com as mãos.
Respondo que nada, com um gesto de cabeça.
“A gente se vê.” — Eric se despede enquanto segura a mão da sua namorada. De um babaca nojento para um namorado sério. Nossa, que progresso!
“A gente se vê por aí, amiga. E começa a procurar uma roupa para a festa. Não se esqueça que é depois de amanhã.” — Cynthia grita enquanto se afasta. De repente, começo a pensar no vestido verde que ela me obrigou a experimentar dias atrás.
“O quê? Que festa?” — Sam pergunta, interrompendo meus pensamentos no mesmo momento em que meu celular vibra.
“Pois, você sabe… Cynthia meio que não me deu opção de não ir para a festa do Eric.” — digo, sabendo que ele não vai gostar da ideia.
“O quê? Eu acho que você não devia ir.”
Enquanto Sam fala, recebo uma mensagem de Willem dizendo que está me esperando no portão de entrada da UCM. Lanço um sorriso ao ver sua mensagem.
“Wanessa, você me ouviu?” — Sam me chama para a realidade, me dando um susto que quase me faz deixar cair o celular.
“Não… o quê? O quê? Bom, o que você dizia?” — finjo estar concentrada no que ele tem para dizer.
“Bom, eu disse que acho melhor você não ir nessa festa. Aquele tipo de lugar não é pra você.”
Eu entendo que ele está preocupado comigo, mas com a Cynthia eu não tenho muitas opções. Ela é bem teimosa. Talvez esse comportamento seja de família.
“Eu sei.” — tento terminar o mais rápido possível a nossa conversa. Willem está me esperando. E, para falar a verdade, também quero ver ele. Preciso.
“Tá certo. Só toma cuidado, mocinha.” — ele diz, cutucando meu nariz. Sorrio.
“Pode deixar, mocinho.” — respondo com um sorriso.
“Quer falar sobre ontem?”
Sobre ontem? Faço uma expressão com o rosto, como de alguém que não sabe do que ele está falando.
“Você sabe, sobre aquele idiota do primo da Cynthia. Você está bem? Fiquei preocupado ontem, mandei mensagem, mas logo percebi que você não queria conversar.”
“Sam, eu…”
Ouvir ele me recordando disso só faz me sentir uma idiota por ter saído com Willem ontem.
“Tudo bem. Sei que não é fácil falar disso e eu sinto muito.” — ele lamenta. Talvez, se eu desse uma oportunidade para ele, nós…
“Bom, eu tenho que ir.” — me despeço.
“Eu te levo.” — ele se oferece. Merda.
“Não precisa. Minha mãe acaba de me mandar uma mensagem. Ela veio me pegar.” — minto. E me sinto mal por isso.

Sem comentários:
Enviar um comentário